(Foto Ilustrativa)
Acredito ser válido repensar as condições sociais nas quais a contemporaneidade está envolvida, para refletirmos sobre nossas próprias condutas, melhorando a nós mesmos, em primeiro lugar, e o meio ao qual vivemos
Desde a década de 1980 ouvimos falar pela voz de Cazuza: “Vida louca, vida...”. Sim, a vida anda bem difícil de entender. Já pertence ao senso comum a percepção do aumento significativo dos casos de transtornos mentais na sociedade. Esse aumento é um fenômeno puramente biológico ou está relacionado com as mudanças na estrutura social dos últimos anos? Para os filósofos e psicanalistas Gilles Deleuze (1925 - 1995) e Félix Guattari (1930 - 1992), a segunda opção deve ser considerada.
No livro “O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia”, lançado em 1972, esses pensadores partem das mudanças estruturais que surgiram com o advento do capitalismo para analisar o crescente aumento dos casos de esquizofrenia na sociedade, considerando que, na época, não havia tão bem definida a separação e classificação dos diversos transtornos mentais como existe hoje em dia, e a categoria “esquizofrenia” funcionava como um guarda-chuva para acomodar as alterações no funcionamento típico da mente. “A nossa sociedade produz esquizos como produz shampô”, afirmam os autores na página 369.
Basicamente, o que teria ocorrido com o advento da modernização e racionalização da sociedade capitalista foi um processo de “desterritorialização”. Os trabalhadores deixaram as terras e as guildas de artesãos para vagar a procura de emprego; a nobreza feudal viu suas terras serem privatizadas e cedidas para capitalistas; o Estado cada vez mais passou a depender de financiamento privado por meio da dívida pública; comerciantes, da mesma forma, também recorriam a empréstimos; as trocas passaram a se efetuar pelo dinheiro, meio abstrato. E assim por diante. Culminando esse processo, o dinheiro, em forma de Capital, ganhou autonomia e tornou-se o grande motor de todo esse fluxo buscando unicamente reproduzir-se numa lógica que possui a produção como um fim em si mesmo.
Nesse contexto, a sociedade capitalista funciona como um sistema operado pelo fluxo do capital. A característica flutuante e descentralizada da sociedade desterritorializa descentraliza e opera a perda de uma fonte de legitimação de sentidos e significados sociais e pessoais. Isso possibilita as múltiplas formações e conflitos de realidades, formando, assim, uma realidade social “esquizofrênica”, cujo o único critério de legitimidade é a produção eficiente. Não à toa no século XX surgiram ideologias totalitárias como o nazismo e o stalinismo, que tão mal fizeram à humanidade e eram tão desvinculadas da realidade.
Não quero aqui desconsiderar o peso do fator biológico nas causas dos transtornos mentais. Longe disso. Mas acredito ser válido repensar as condições sociais nas quais a contemporaneidade está envolvida, para refletirmos sobre nossas próprias condutas, melhorando a nós mesmos, em primeiro lugar, e o meio ao qual vivemos. Por fim, deixo uma passagem do livro:
“Os fluxos monetários são realidades perfeitamente esquizofrênicas, mas que só existem e funcionam na axiomática imanente que conjura e repele essa totalidade. A linguagem dum banqueiro, dum general, dum industrial, dum quadro ou dum ministro é uma linguagem perfeitamente esquizofrénica, mas que só funciona estatisticamente na axiomática uniformizadora que a põe ao serviço da ordem capitalista”. (Páginas 256 - 257).
> Fonte: Gilles Deleuze, Félix Guatarri. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofreniz 1. Lisboa: Assirio & Alvim, 2004.