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Vida e Sociedade

Leone Rocha

leone.rocha@gmail.com

Desse Jeito

Por que a vida não muda?

As lideranças da cooperativa pensaram, pensaram. Esforçaram-se, mas não resistiram. Diante das possibilidades de lucro que a expansão de seus negócios poderiam atingir com o financiamento do empresário bem-sucedido, resolveram pôr fim à cooperativa

Colunistas  –  04/03/2023 21:50

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(Foto Ilustrativa)

Dos seus mais de 30 cooperados, restaram pouco mais de cinco sócios e alguns funcionários em regime de CLT. Foi realizado um evento para lançamento da empresa onde estavam presentes o prefeito, vereadores, padres, pastores, e a fina sociedade comemorando, exultada, seu primeiro produto próprio para exportação

 

Imaginemos uma cidade pequena na Amazônia chamada Azulinópolis. Nesta cidade existe um prefeito, uma prefeitura, câmara de vereadores. Escolas públicas e privadas. Igrejas católicas e evangélicas. Bares, praças e um cinema popular. Como em toda cidade, existe também um empresário bem-sucedido. Em nosso caso, trata-se de João Romão, detentor do único supermercado e da única loja de departamentos do lugar. Como limítrofe da capital do Estado, nossa urbe herda respingos de desenvolvimento, e faculdades de Direito e Ciências Sociais, entre outros cursos, vinculados a uma instituição privada de ensino superior, a Faculdade Universitas.

A rotina nesse lugar é bem tranquila. Servidores públicos municipais cumprem sua jornada de seis horas diárias; servidores celetistas cumprem sua jornada de oito horas. A diversão ocorre nas praças e cinema para a família e crianças, bares para adultos. O consumo está garantido pelo aparelho privado de João Romão. Aparentemente, tudo corre bem dentro da lógica do trabalho e consumo. Mas não. A cidade encontra-se com um problema: a população está crescendo e com isso o desemprego emerge. A sociedade pressiona o prefeito para promover concursos públicos, mas este afirma não existirem recursos para novas vagas; o prefeito reclama com João Romão que o mesmo oferta pouco emprego, o qual também alega baixo lucro para abertura de novos postos. E, assim, a demanda permanecia suspensa, pairando, sem solução. Uma sombra radiando preocupação na sociedade azulinense.

Eis então que acadêmicos de Ciências Sociais da Faculdade Universitas, reunidos, tiveram uma ideia. Ouvindo falar sobre as concepções de cooperativismo e a produção de biojoias, e atentando para o potencial natural de sua cidade, encravada no coração da Amazônia, resolveram montar uma oficina profissionalizante de produção de biojoias com pessoas desempregadas da sua cidade. O projeto começou tímido, mas os primeiros participantes empolgaram-se tanto com a ideia que ela continuou. As primeiras biojoias foram produzidas e vendidas. Aos poucos, mais pessoas incorporaram-se à cooperativa. O processo de profissionalização então ganhou vida. Os acadêmicos já não eram mais necessários, pois o movimento ganhou liderança própria, autônoma: e materializou-se. Foi legalmente instituída e registrada a “Cooperativa de Biojoias Gaia”, com mais de 30 cooperados, na sua maioria mulheres.

A cooperativa surgiu como um vento de esperança na cidade, mas como uma tempestade para João Romão. O empresário começou a perder funcionárias para a cooperativa; os moradores de Azulinópolis estavam gastando seu dinheiro com produtos da cooperativa e não em suas lojas; as ideias de cooperação, compartilhamento, bem coletivo, de “trabalhar menos e viver mais”, “trabalhar no que gosta”, estavam espalhando-se pela cidade. Seus funcionários estavam mais alegres, sonhadores. Começavam a sonhar com “uma cooperativa própria”; “uma cooperativa de mecânicos”, dizia um; “uma cooperativa de carpinteiros”, dizia outro. João Romão começou achar aquilo tudo muito perigoso.

Primeiramente, ele procurou as Igrejas. De repente, na cidade, os sermões dos padres e dos pastores começaram a afirmar veementemente: “A propriedade é dom de Deus!”. Mas não estava surtindo efeito. Então João Romão procurou o prefeito. Este, prontamente em seu socorro, procurou os vereadores que, não menos dispostos em auxiliar João Romão, foram ter com os advogados da Faculdade de Direito, ao que disseram: “Nada pode ser feito. A cooperativa é um direito de livre associação garantido pela Constituição”. Responderam isso os advogados aos vereadores, que retornaram ao prefeito, que retornou a João Romão, que estatelou-se no chão.

João Romão bebeu uma pinga para afogar as mágoas. Quando próximo a conforma-se em ter que conviver com tal cenário, e já por volta da quarta dose e ébrio, recebeu uma inspiração sabe-se lá de onde e uma ideia brotou na sua mente. Foi dormir tranquilo esperando um novo dia com uma nova possibilidade de resolver, desta vez por si mesmo, todo esse imbróglio.

Amanheceu. João Romão reuniu documentos, relatórios, contas. Arrumou-se e foi conversar com as lideranças da cooperativa Gaia. Ele tinha uma proposta.

- Pensem bem! - Disse ele.

- Proponho pra vocês uma sociedade. Eu invisto um dinheiro e transformamos a cooperativa de vocês em uma empresa. Como se diz hoje? Uma startup! Isso! Compramos máquinas modernas; transformamos o regime de trabalho para a CLT. Podemos aumentar a produção e expandir. Quem sabe até exportar! Podemos ter o primeiro produto de exportação de Azulinópolis!

As lideranças da cooperativa pensaram, pensaram. Esforçaram-se, mas não resistiram. Diante das possibilidades de lucro que a expansão de seus negócios poderiam atingir com o financiamento de João Romão, resolveram pôr fim à cooperativa e criar uma empresa. Assim, a Cooperativa de Biojoias Gaia veio a ser a Biojoias Gaia S.A., tendo como sócio majoritário o senhor João Romão. Dos seus mais de 30 cooperados, restaram pouco mais de cinco sócios e alguns funcionários em regime de CLT. Foi realizado um evento para lançamento da empresa onde estavam presentes o prefeito, vereadores, padres, pastores, e a fina sociedade azulinense comemorando, exultada, seu primeiro produto próprio para exportação.

Desde então, João Romão comprou roupas novas, carro novo, e adotou o padrão e alcunha de “exportador”. Uma de suas primeiras medidas como agente internacional azulinense foi tomar providências para, a partir de amistosa influência na Faculdade Universitas, impedir a abertura de novas vagas para o curso de Ciências Sociais na instituição. O que de fato conseguiu sem muito esforço. 

 

Por Leone Rocha  –  leone.rocha@gmail.com

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