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Vida e Sociedade

Leone Rocha

leone.rocha@gmail.com

Reflexão

O lugar do homem no movimento feminista

Um homem pode considerar-se feminista, desde que ele saiba que o Lugar de Fala e a Representatividade no feminismo são exclusividades das mulheres

Colunistas  –  23/03/2023 19:25

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(Foto Ilustrativa)

Os dispositivos de gênero machistas são tão fortes que a luta feminista no interior de um homem provoca tamanha aflição que é preciso cuidado com certas declarações para não cair na hipocrisia e no discurso vazio

 

Recentemente o Brasil presenciou um político homem no Congresso Nacional, de peruca, falando pelas mulheres. Pensei em escrever um artigo sobre feminismo negro e “Lugar de Fala”. Mas, então, quem sou eu, homem, branco, pra falar desse tema? Realizei uma pesquisa, até porque meus conhecimentos na área de feminismo são bem elementares. O resultado é o presente texto, uma resenha do artigo “Homens e o Movimento Feminista no Brasil: Rastros em Fragmentos de Memória”, de Mariana Azevedo, Benedito Medrado e Jorge Lyra, publicado nos “Cadernos Pagu”, importante revista de estudos feministas brasileira, no seu número 54, ano de 2018 (link para o artigo ao final do texto). No artigo os autores debatem sobre as possibilidades do reconhecimento dos homens como sujeitos na luta feminista, tendo como pano de fundo os resultados de pesquisa em âmbito e pós-graduação. Elaboro aqui uma discussão com os principais pontos do artigo dada a importância do tema na atualidade. Recomendo seriamente a leitura completa do mesmo, que se encontra disponível na rede. O texto que apresento aqui é superficial e possui um caráter de apresentação. Dito isso, vamos lá.

Na introdução do texto, os autores realizam um levantamento histórico da origem do termo “feminismo” na França e mostram como ele estava associado a um movimento misto de homens e mulheres, sendo um termo criado por médicos para designar, ainda no século XVIII, a característica de homens afeminados ou por alguma doença ou por aderirem a causas reivindicatórias das mulheres, como o “sufragismo”. Os autores deixam claro que, enquanto movimento social, o feminismo possui completa autonomia da figura masculina, sendo independente da participação deste, mas, ao longo de seu percurso histórico, desde suas origens, ganhou apoio entre alguns homens de envergadura, como o iluminista Marquês de Condorcet (1743-1749).

Já no Brasil, os pesquisadores citam o trabalho da historiadora americana June Hahner (livro “Emancipação do Sexo Feminino: A Luta pelos Direitos da Mulher no Brasil. 1870-1940”, Editora Mulheres, ano de 2003), para citar como houve a participação de homens no apoio ao primeiro momento do feminismo brasileiro. Nesse período circulou “O Jornal das Senhoras”, editado no Rio de Janeiro e lançado em 1852, com vários artigos assinados por homens. Seguiram-se a publicação de vários jornais feministas, como o “Brasil Mulher” (1975) e o “Nós Mulheres” (1976). Com o apoio da Fundação Carlos Chagas foi editado de 1981 a 1988 o jornal feminista “Mulherio”, que em seu primeiro número foi publicada uma nota intitulada “Homens em Ação”, que relata a criação de um grupo de homens a partir de um caso de violência contra a mulher que ficou famoso. Nesse jornal ocorreu um polêmico debate em torno do papel do homem quanto ao movimento feminista que se iniciou com um artigo publicado do então professor universitário Aloísio Mercadante sobre a conquista do direito à licença paternidade pelos professores da PUC-SP. O então professor questionava a baixa repercussão da vitória que significava a licença entre os homens, expressando sua revolta, intitulando seu artigo com a frase “Ser macho é cinza”. Um leitor não gostou da formulação de Mercadante, afirmando ser incomparável os dramas pelas quais passam as mulheres, e que somente essas é que poderiam lutar pela efetivação da justiça de gênero.

Continuando sobre a aproximação dos homens ao movimento feminista, os autores citam desta vez a obra de Karen Giffin (obra não encontrada no artigo) para afirmar que no período da década de 1960, no âmbito dos estudos sobre gênero, dentro do meio universitário e nos demais espaços da classe média, existiam homens interessados em participar das discussões. Mas essa participação precisou ser negada pelas mulheres. Segundo Giffin, afirmam nossos autores, essa estratégia foi necessária num primeiro momento pela experiência das mulheres com a “dominação masculina”. Nesse período ocorre também um processo de institucionalização do feminismo que culmina na década de 1990. Proliferam organizações não-governamentais, governamentais, fóruns, encontros nacionais e internacionais. Coloca-se então a questão de representatividade como limite à participação masculina no movimento feminista. Por mais que os homens possam apoiar, não há legitimidade para representar as mulheres em instâncias de poder.

A partir de 1990 tem-se o marco também de uma série de publicações feministas, especialmente em língua inglesa, que tiveram com foco a relação entre homens e feminismo. É nó âmbito desses estudos que surge o termo “homens pró-feministas”, que consideram o fato de que, por que os homens não vivenciam a opressão de gênero do mesmo modo que as mulheres, eles não podem ser feministas, mas apenas apoiadores do feminismo. Nesse movimento, os pesquisadores citam a obra de Michael Kaufman (“Los hombres, el Feminismo y las Experiências Contradictórias del Poder entre los Hombres”, de 1994), que afirma a tomada de consciência das experiências contraditórias de poder entre os homens é a base para que se engajem no feminismo. Afirmam: “Segundo o autor, nas sociedades patriarcais, existe na vida dos homens uma contraditória combinação entre poder, privilégios, dor e falta de poder”.

Concluindo o artigo, os autores problematizam a relação entre os homens e o movimento feminista relacionando esse debate com as questões mais amplas sobre a categoria gênero, seus conceitos a formação de identidades. Utilizando a contribuição de Linda Nicholson (“Interpretando o gênero”, “Revista Estudos Feministas”, ano 2000), afirmam que muitos escritos feministas ainda herdam a concepção de gênero calcada no “fundacionalismo biológico”, oriundas do determinismo biológico e do construcionismo, com forte tendência para valorizar a importância da biologia na formação do caráter. Seria necessário romper com esse liame biológico, de modo a ampliar o escopo do feminismo para além dos constituintes biológicos. Segundo os autores do artigo:

Dessa forma, propomo-nos a compreender a questão da reivindicação de uma identidade política feminista por parte de homens como uma expressão dessas possíveis descontinuidades entre corpos e prescrições de gênero, no sentido de que ‘tais critérios, [do que significa ser mulher] são considerados capazes de nos habilitar a distinguir o inimigo do aliado e a fornecer a base para o programa político do feminismo’ (Nicholson).”

Então, pelo que compreendi do texto, os autores afirmam a existência da possibilidade de que os homens possam definir-se como feministas. E eu, o que eu acho? Sinceramente, eu concordo que é possível também. Mas com duas condições. Acredito que um homem possa considerar-se feminista, desde que ele saiba que o “Lugar de Fala” e a “Representatividade” no feminismo são exclusividades das mulheres. Quanto a mim, ainda não tenho lá essas coragens para afirmar-me feminista. Sigo na luta contra meu machismo interior, o que já é difícil. Os dispositivos de gênero machistas são tão fortes que a luta feminista no interior de um homem provoca tamanha aflição que é preciso cuidado com certas declarações para não cair na hipocrisia e no discurso vazio. Mas que há o esforço, isso há.

> Artigo: Azevedo, M.; Medrado, B.; Lyra, J. Homens e o movimento Feminista no Brasil: Rastros em Fragmentos de Memória, “Cadernos Pagu” (54), 2018.

 

Por Leone Rocha  –  leone.rocha@gmail.com

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