(Foto Ilustrativa)
O jogador quer ganhar, o cronista deseja passar suas impressões, seu olhar para os leitores; depois de ler uma crônica sobre um fato banal, o fato pode adquirir outra dimensão na mente do leitor
Procuro nas agendas antigas, esquecidas em alguma estante, entre livros, as frases anotadas na Oficina de Crônicas, que o premiado escritor José Castello ministrou em 2007, em Curitiba. Encontro-as e leio uma frase: “O cronista com seu olhar afeta a percepção dos acontecimentos”.
Caminho até a cozinha para fazer um chá de morango. Coloco água numa chaleira e ligo uma das bocas do fogão. Enquanto a água esquenta, caminho até a sala no final do corredor, ligo o computador e abro o e-mail de uma amiga que está aprendendo a jogar pôquer. Ela comenta que os jogadores se dividem em agressivos e passivos. Igualzinho aos cronistas! - penso.
O jogador de pôquer também deve ser hábil na “seleção de mãos iniciais”. Alguns são conservadores, outros, ousados. Mais uma característica que os jogadores de pôquer e os cronistas compartilham.
Respondo o e-mail e corro até a cozinha. Volto com uma xícara com florzinhas amarelas, dentro dela o gostoso chá de morango.
Minha amiga responde imediatamente enfatizando que o pôquer é um jogo de inteligência e exige sensibilidade. Para ganhar é preciso decifrar, decodificar, ter postura, movimento das mãos, dos pés, olhares, a linguagem do corpo.
Para mim a ideia de decodificar ou decifrar é mágica. A frase de Castello, “O cronista com o seu olhar afeta a percepção dos acontecimentos”, e a atitude do jogador de pôquer se unem na minha mente. Jogadores de pôquer devem criar boas estratégias. E os cronistas? Também criam estratégias para tornar o texto leve e sedutor, enquanto denunciam os erros da sociedade, a frivolidade dos costumes, os preconceitos econômico-sociais, raciais, sexuais e outros.
Além de saber embaralhar e blefar, é preciso descobrir padrões de comportamento. “Ler” os outros jogadores. Os movimentos dos outros apostadores devem ser monitorados. O olhar do jogador precisa adquirir a acuidade de uma câmera de televisão. Precisa de um bom enquadramento. De foco e nitidez. Nada pode escapar ao olhar do jogador.
O professor de minha amiga disse que durante o jogo a atenção deve ser total. O cérebro precisa criar novas sinapses para perceber pequenos gestos, tiques nervosos, mudanças no olhar, na voz, na respiração. Os movimentos quase imperceptíveis do pescoço, dos lábios, das pernas, dos pés. O jogador deve treinar sua atenção. Mapear cada movimento do opositor.
Os grandes jogadores não contam só com a sorte para ganhar. A chamada “sorte de principiante” tem um curto prazo de validade. O jogador experiente percebe detalhes. Por que essa pessoa morde os lábios? Aquele levanta as sobrancelhas ao ver as cartas, enquanto o outro suspira? Um abaixa a cabeça, aquele sorri, o outro agita os joelhos. Alguém se mexe na cadeira, o outro olha a parede. Um piscar de olho, engolir saliva, mexer o anel, nada passa despercebido para o bom jogador.
O jogador de pôquer e o cronista têm algo em comum, ambos sabem realizar uma leitura detalhada das pessoas. Aprenderam a ler o mundo. O jogador porque quer ganhar, o cronista porque deseja passar suas impressões, seu olhar para os leitores - esse olhar capaz de afetar “a percepção dos acontecimentos”. Depois de ler uma crônica sobre um fato banal, o fato pode adquirir outra dimensão na mente do leitor.
Decifrar as pessoas, decodificá-las para escrever crônicas que realmente impactem, sensibilizem e ajudem a ressignificar os acontecimentos, a modificar a visão do mundo. Afinal, essa é a função do cronista, ou não é?