(Fotos Ilustrativas)
“Esse doutorado só vale a pena, se você não tem o necessário para sobreviver aí ou se você precisa aprender a valorizar e agradecer pelo que tem”
Pra quem me lê, resolvi mudar o foco da minha coluna e contar, baseada nas experiências vividas lá pelos anos 90 e pelas atuais, sobre o que é viver fora do país da gente, quando a gente não tem a sorte de exercer a nossa profissão. Vou começar falando dessa realidade de um modo geral e, nos próximos artigos, ser mais específica contando minhas próprias vivências.
Vamos lá?
Bom, a vida é uma verdadeira pregadora de peças. Às vezes até prega as peças com pregos errados e, vez ou outra, esses pregos errados acabam dando certo após muitas marteladas. É preciso ter paciência e preparar o couro, porque só os que têm muita sorte alcançam um objetivo sem levarem marteladas e chineladas. Então, vou mostrar para vocês o "mestrado" em serviço subalterno fora do nosso país de todas as pessoas das diversas regiões, com diplomas de graduação, pós, mestrado ou até sem nenhum diploma. Pessoas com passagem por grandes empresas, onde ocupavam cargos relevantes ou vindas do cabo da enxada mesmo. Todo dia chega gente assim. Não estou falando das pessoas que vêm para melhorar a língua, adquirirem experiência ou trabalharem nas suas profissões não, porque, dessa forma, arrancar-lhes o couro não fica a cargo do trabalho, mas da saudade apenas. Estou falando das pessoas que, por contingências da vida, perderam seus cargos, ficaram sem um meio de sobrevivência e, sem opção, vieram cursar os seus mestrados em faxina, em lavar pratos, servir mesas, etc., com uma carga horária muito superior àquela em que estavam acostumadas no seu próprio país, trabalhando em pé todo o dia e grande parte da noite, ganhando no final da jornada dores nas pernas, pés inchados e os ossos moídos.
Tem que ser muito forte pra aguentar tudo isso e mais forte ainda pra desistir e voltar atrás, tendo em vista o caos pelo qual o nosso país está passando. Pois é… Muitas dessas pessoas têm em comum os diplomas engavetados e seus currículos substituídos pela experiência que seus pais lhes proporcionaram (ou não), em passar roupa, limpar casa, lavar pratos... É aqui também que aquelas que se candidatam a uma vaga de babá utilizam o aprendizado adquirido ao cuidar do irmão mais novo. E assim o tempo vai ficando curto pra correr atrás do sonho, porque correr atrás dele demanda tempo e é preciso usar todo ele pra se sustentar. A realidade te obriga a pegar o que vem na frente, e aí você muda os planos e vai percebendo aos poucos que os assuntos passam a ser outros, quando percebe que não tem mais com quem conversar sobre o que realmente você entende e sente falta. O papo agora gira em torno de produtos de limpeza, a caca do cachorro da patroa que você tem que limpar, a merreca de gorjeta do cliente chato que você teve que suportar, a cara de felicidade que você tem que ensaiar dia após dia pra quando a patroa elogiar sua faxina e te indicar pra outra pessoa, porque isso significa que você é boa mesmo na coisa.
Você fica grata, feliz, porque precisa, mas ao mesmo tempo sua autoestima vai pelo ralo, porque você se pergunta se é só pra osso que você serve mesmo. Mas, no fim, você aprende muito mais do que limpar e servir. Você aprende a olhar para o outro. Nunca mais você vai fazer mimimi dentro de um restaurante por causa de uma mancha no copo. Se você reclamar, nunca mais será para o dono ou gerente, porque você aprendeu o que custa para o garçom uma reclamação do cliente. No mínimo, você poderá chamar o garçom em particular para alertá-lo com paciência e educação. Ah! E tem mais! Às vezes você consegue um biquinho aqui e ali, na sua área, como a exemplo, aquela mocinha com quem você deu de cara no metrô, com cara de modelo saída de revista de alta costura. Então... Por debaixo dos panos, é inacreditável o trabalho que ela dá conta de fazer para continuar na luta pelo grande sonho de ser modelo de passarela ou de revista de verdade.
Bem diferente das fotos no Facebook
Tem muita gente que nem conta pra ninguém o tipo de trabalho a que se sujeita fora do país. Eu sou uma. É a primeira vez que estou falando disso, mas não é por desmerecer o trabalho que chamamos de “subalterno” não, porque é dele que sai nosso sustento e costuma ser muito maior do que o de pessoas que passam o dia num escritório. A gente não fala porque estar fazendo algo abaixo da nossa capacidade nos coloca meio pra baixo, sim. No Facebook tudo parece incrível, porque qualquer um transforma a vida em glamour, quando na verdade só teve mesmo um ou outro momento glamouroso.
Sabe a foto daquela praia maravilhosa que a gente postou? Então, nem sempre foi em férias prolongadas. Podemos ter passado apenas o dia de folga naquele lugar maravilhoso ou passado por ali na ida ou na volta do “tronco”, porque dificilmente teremos tempo pra estar curtindo os locais maravilhosos, apesar de passar por tantos deles todos os dias. Existem histórias que até Deus duvida por trás das fotos bonitas. E eu vou contar algumas pra vocês. Uma vez por mês. E aí vocês irão entender que a gente não posta fotos bonitas pra esconder a nossa realidade aqui. A gente posta fotos bonitas porque a gente sabe que reclamar do couro arrancado e das marteladas e chineladas levadas só vai nos fazer desistir do nosso objetivo. A gente posta fotos bonitas porque nossos poucos momentos de lazer são sagrados, e por esse motivo devem ser bem aproveitados. A gente posta fotos bonitas para que a realidade não nos sufoque, não nos mate.
Lobos em pele de cordeiro
É inacreditável que, não obstante o trabalho pesado que damos conta de fazer, recebendo um dinheiro que por chegar às nossas mãos “chorado”, nem rende o que supostamente teria que render, ainda temos que lidar com os lobos - aqueles vestidos em pele de cordeiro pra quem arrancamos nosso couro e, na hora de receber o que fazemos jus pelo nosso trabalho, ficam mendigando, adiando. Nosso trabalho é elogiado antes do final do mês e menosprezado na hora de receber. E mais desvalorizado ainda quando se acham no direito de pagarem menos do que o acordado. Aí nos lembramos do nosso diploma engavetado e dizemos pra nós mesmos: “Passei mais da metade da minha vida estudando pra ser descaradamente ludibriada por quem só tem dinheiro?”. Nós nos damos conta de que temos muito mais na cabeça do que o que eles têm no bolso, mas estamos lá, nos sujeitando, porque a esperança, que na maioria das vezes é só de termos um lugar pra chamarmos de nosso, fala mais alto.
Não demora muito nessa era globalizada, e nosso diploma engavetado não passa é de um papel amarelado, num mundo onde as exigências crescem a cada dia e a idade aumenta. Num mundo onde somos desvalorizados por ser pobres, negros, mulheres ou velhos. O mercado nos quer jovens, experientes e preferencialmente homens. Então não temos mesmo muita chance de termos onde cairmos mortos. Temos que nos sujeitar. Outra realidade aqui fora, muito mais nua do que crua, é a da mulherada que vem com o sonho dourado do príncipe encantado que vai lhe dar vida de princesa. Não se engane. A maioria dos “príncipes” só está querendo uma doméstica de cama, mesa e banho, sem pagar por isso. Depois ele se cansa. A princesa é que virá sapo, porque ele quer novidade. E quando encontrar uma doméstica melhor, vai enxotá-la e não vai querer saber se você tem ou não pra onde ir. Aliás, não tem. Porque ele te privou de amizades. Amizades são perigosas. Elas te fazem enxergar realidades. Isso acontecerá de diversas formas. Tenha certeza.
Amigos, amigos; negócios à parte
E uma outra realidade aqui, e que não é muito diferente daí ou do resto do mundo, é aquela do amigo que se deu bem, que pode nos colocar numa posição melhor, mas prefere dar essa oportunidade a estranhos. A oportunidade que ele nos dará será apenas e tão somente a de abastecê-lo com trabalho inferior a nossa capacidade. Não que isso seja humilhante, mas é aviltante, é revoltante que a antiga concepção de que ter um servo, seja na família ou entre amigos, ainda remeta a uma sensação de poder. Os amigos que se deram bem não vão nos querer igual ou em posição superior a deles, porque os seres humanos gostam de se sentir por cima. Querem ser os melhores, e então é na desigualdade que eles se encaixam. Se sentem bem. Ah! Nos querem também lambendo o saco deles e ainda vão dizer que fazemos isso com interesse de melhorar de vida, de cargo... Porque essas pessoas pensam que todos são iguais a elas. E no dia em que perceberem que que nossa inteligência vai além da delas vão nos dispensar e fazer parecer que a culpa é nossa. Que o amigo não somos nós. Então, diante das muitas lições, fica a dica: “Amigos, amigos; negócios à parte”. Aliás, melhor ainda é nem ter “negócios à parte”.
Então, meus caros, essa é mais uma face do nosso “doutorado subalterno fora do país”. Não romantize esse mundo que você não conhece pelas fotos das poucas horas de lazer que temos por aqui, que não são falsas, mas não fazem parte da nossa rotina diária. O que temos aqui são só momentos que, dependendo do valor que você dá às pequenas coisas, pode ter por aí também. Muita gente está aqui apenas na esperança de conseguir o que você, com bem menos esforço, tem aí. Agora, esse “doutorado” só vale a pena, se você não tem o necessário para sobreviver aí ou se você precisa aprender a valorizar e agradecer pelo que tem. Ele serve para que você aprenda o que é realmente chorar de saudade. Vale para que você vença o medo do desconhecido e teste seus limites. Pra que você aprenda que o trabalho do doutor é igualzinho ao do garçom, ao do porteiro, ao da faxineira... Vale para que você construa uma versão melhor de você.
Até a próxima!