(Foto Ilustrativa)
Para nossa sociedade, a vida tem um sentido se for útil ou utilizável; talvez para ser mais atual ainda: consumível e manipulável
Embora apresente um outro quadro, neste ano de 2021 ainda nos encontramos em meio à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), que evidenciou dimensões impalpáveis das conexões globais da humanidade atual. A partir dessa experiência que demonstra a fragilidade da vida humana e por consequência de toda a nossa existência com o Ambiente, devemos nos questionar, ou assim deveríamos fazer, quanto a percepção do utilitarismo da vida. Isto é: Além de ampliarmos a nossa visão do que vem a ser vida, poderíamos aproveitar esse momento pandêmico para indagarmos sobre o modo como experimentamos a noção de vida, se restringe à mera dimensão de utilidade ou utilitarismo, sob o viés de uma objetificação tecnocientífica ou o produto, uma coisa, uma mercadoria, algo que pode e deve ser explorado ou consumido por simples necessidade ou valoração mercadológica. Então, surge a seguinte indagação: A vida não é útil: Por que vivemos?
Aparentemente, apresenta-se como um questionamento sem sentido! Afinal, para nossa sociedade, a vida tem um sentido se for útil ou utilizável. Talvez para ser mais atual ainda: consumível e manipulável. Mas tal entendimento não pode nos levar a cultivar tendências destrutivas próprias de nossa civilização, como o consumismo desenfreado, uma visão limitada e excludente de vida humana e a vida como um todo, além de causar a destruição ambiental? A cosmovisão indígena, inserida nas reflexões de *Ailton Krenak, aponta para o que esse pensador afirma como: “Uma espécie de erosão da vida, onde os seres são atravessados pela modernidade, a ciência, a atualização constante de novas tecnologias”. (Krenak, 2020, p.95)
Segundo essa reflexão, a vida em sua totalidade, torna-se cada vez mais passível de consumo e destruição. Essa condição expressa a impossibilidade de negarmos nossas pegadas que modificaram o ambiente terrestre. Ao mesmo tempo, precisamos assumir nossa condição de terranos, ou seja, de que a Terra é nossa morada e que convivemos com outras espécies. É o que se denomina como sendo a “Era do Antropoceno”. Como afirma Krenak: “Foi-se a ideia de que cada um deixa sua pegada individual no mundo; quando eu piso no chão, não é meu rastro que fica, é o nosso. E é o rastro de uma humanidade desorientada, pisando fundo”. (Krenak, 2020, p.96)
Desorientados exatamente por uma concepção de utilitarismo da vida que ainda nos orienta para mais e mais desorientação, substituindo a vida em sua plenitude pelo seu consumismo e artificialização que leva ao desaparecimento do mundo, mas que não é percebido por nós, pois como afirma Krenak: “Quem vive na cidade não experimenta isso com a mesma intensidade porque tudo parece ter uma existência automática: você estende a mão e tem uma padaria, uma farmácia, um supermercado, um hospital”. (Krenak, 2018, p.99).
Para os povos indígenas, a experiência é diferente. Citando o pensador: “Na floresta não há essa substituição da vida, ela flui, e você, no fluxo, sente a sua pressão. Isso que chamam de natureza deveria ser a interação do nosso corpo com o entorno, em que a gente soubesse de onde vem o que comemos, para onde vai o ar que expiramos. Para além da ideia de ‘eu sou a natureza’, a consciência de estar vivo deveria nos atravessar de modo que fôssemos capazes de sentir que o rio, a floresta, as nuvens são nosso espelho na vida”. (Krenak, 2018, p.100).
Partindo da cosmovisão indígena sobre a vida e a Terra, Krenak não nos traz uma utopia ou retorno a uma natureza que nem existe mais e costuma ser muito romantizada, mas nos desafia a questionar nossa inserção neste organismo vivo que é o planeta Terra e a relação com tudo o que é vivo, com o objetivo de adiarmos o fim do mundo, mesmo que tenhamos que pôr fim a um mundo que nos faça apenas cair em maiores desorientações. Desta forma, o autor nos adverte que: “Em vez de ficarmos pensando no organismo da Terra respirando, o que é muito difícil, pensemos na vida atravessando montanhas, geleiras, rios, florestas. A vida que a gente banalizou, que as pessoas nem sabem o que é”. (Krenak, 2018, p.29).
A cosmovisão indígena, presente na reflexão de Aílton Krenak, nos desafia a abandonar o sentido utilitarista no qual impregnamos a vida, para compreendê-la e nos relacionarmos com ela de outro modo. Como então definir a vida? Segundo Krenak: “A vida é transcendência, está para além do dicionário, não tem uma definição”. (Krenak, 2020, p.29).
Podemos pelo menos dizer então que “A vida não é útil”, pelo menos do modo como aprendemos a interpretá-la e utilizá-la.
*Krenak, A. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.