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Por Que Este Mundo?

Benjamin Moser e a biografia de Clarice Lispector

Um livro que se dorme, se come, se reflete, se sonha

Crítica  –  16/01/2016 08:29

Publicada em: 22/12/2015 (17:40:20)
Atualizada em: 16/01/2016 (08:29:10)

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(Fotos: Divulgação)

Certeza: Clarice Lispector deixa de ser uma deusa da literatura; ela vira gente; entenda como 

É, no mínimo, ousadia apenas e simplesmente tentar resenhar “Clarice,”.
Eu que sempre opto por livros estrangeiros e num lapso de bom senso involuntário decidi: vou começar a literatura brasileira por Clarice Lispector.
Choque.
Crise existencial.
Implosão.

Densidade e mais densidade dentro dos devaneios desmistificadores de humanidade e mais sensíveis do que qualquer outra qualidade, em qualquer autor.

Eu que depois de apenas dois livros escritos por essa mulher me apaixonei pela sua habilidade e profundidade de tal maneira que não havia outra solução se não procurar sua profundidade explícita, em forma de biografia. E encontrei.

“Clarice,” é a história de Clarice Lispector contada através da lente americana de Benjamin Moser. Rapaz este que encontrou em Clarice o mesmo amor que eu encontrei, e decidiu que não só o Brasil, mas também o seu país e todos os outros lugares do mundo precisavam conhecê-la, dedicou-se à arte de contar, estrangeira e ainda assim muito muito amorosamente, a vida e a obra de Clarice Lispector.

O início foi frustrante, eu sofri. Eu que estava esperando as 600 páginas de Clarice e mais Clarice, levei um susto quando me deparei com a história de emigração da sua família...

Foi logo nesse início que aprendi sobre ela muito mais do que imaginei que aprenderia: a história de Clarice Lispector é intrínseca à história do judaísmo no Brasil e na Rússia, bem como a do antissemitismo e ainda a de uma família de emigrantes que começa uma vida num país totalmente novo, sem poder contar com a ajuda de parentes ou amigos.

É a história de uma família cuja mãe padeceu de sífilis em razão de soldados russos cruéis e estupradores. Uma família cujo pai sofreu a vida inteira por viver nos limites do sustento e da sobrevivência. Uma família cuja filha mais velha teve que assumir o papel de guardiã, enquanto o pai trabalhava e a mãe convalescia. Uma história que deixa marcas na irmã mais nova, Haya, que há de se chamar Clarice, e que tão solitariamente sofreu uma vida inteira pela mãe que não pode salvar.

Benjamin Moser tem muita maestria ao desenrolar os prós e contras de uma vida intensa e tão misteriosa quanto a de Clarice. Há de ser comum acordo o fato de que ao ler uma biografia esperamos entender uma pessoa por trás da figura pública que ela foi, e eu entendi a intensidade, a sensibilidade, a humanidade de Clarice, mas fica claro também que não há como desvendar essa mulher! 

Mistério e personalidade 

Cada página desta biografia, que muito gentilmente foi intitulada na edição original (em inglês) como "Por que este mundo?" em homenagem à pergunta que Clarice se fez a vida inteira, tem doses incomensuráveis do mistério e da personalidade que ela é.

Nunca antes eu li uma biografia sobre um escritor brasileiro, escrita por um escritor americano, e devo ressaltar tal fato, parabenizando Benjamin Moser pela pesquisa intensa que fica óbvia e torna o livro muito mais interessante e compreensível do que seria se fosse levada em conta somente a história pessoal de Clarice. Isso além do estudo que foi feito em cima da literatura brasileira em geral, uma vez que Benjamin é capaz de descrever as obras contemporâneas à Clarice como se fosse um professor de literatura no ensino médio.

Com relação à obra que a nossa escritora deixou, Benjamin é capaz de mostrar porque é classificada como autobiográfica. Ele consegue conciliar o momento pessoal que Clarice vivia com os livros que ela escreve em cada um desses momentos, e é vendo esse lado pessoal que a gente se humaniza. É aí que Clarice Lispector deixa de ser uma deusa da literatura. Ela vira gente.

Inclusive, é porque as páginas deste livro carregam toneladas e mais toneladas profundas desta personalidade, que não consegui ler mais do que 60 páginas num mesmo dia. O livro nos deixa próximos de Clarice ao ponto de absorver sua intensidade e depressão, ao ponto de sentir, em muitos instantes, a sensibilidade com a qual ela era dotada. A sensibilidade com a qual e através da qual ela tentava compreender o mundo e a si mesma.

Em suma, senti falta apenas de algumas fotos que ilustrassem os rostos das pessoas com quem o leitor cria tanta proximidade ao longo da leitura. Apesar de ser discreta e reservada, Clarice sempre esteve amparada por bons amigos, que a ajudaram e amaram como um leitor apaixonado de sua obra gostaria de ter feito.

Por fim, só o que posso dizer é que “Clarice,” é um livro que se dorme, se come, se reflete, se sonha; eu vivi “Clarice,”. Comi “Clarice,”. Passei cada dia desta jornada de leitura ruminando-o, e mesmo enquanto dormia, sonhava-o.

A história de vida e obra de Clarice Lispector é a história mais inspiradora que jamais li, por isso não fazer um apelo sem restrições para que leiam “Clarice,” é um desfavor à humanidade. É negar a nós uma chance de sermos melhores, porque este é um livro que muda as pessoas. Este é um livro que melhora as pessoas. Eu melhorei. Espero que você o leia, e melhore também.

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Frente & Verso 

4. Obra: Clarice,
. Autor: Benjamin Moser
. Editora: Cosac Naify
. Número de páginas: 648

Por Gabriela Castro  –  belikovgabi@gmail.com

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