(Foto Ilustrativa)
Se não se sabe quem representa quem, é
quase irrelevante o voto ser aberto ou secreto
Para lá da óbvia constatação de que o voto de parlamentares não deveria ser secreto, pois um político não deveria ser protegido da pressão do seu eleitorado. Os eventos recentes ocorridos no Congresso Nacional demonstram as fraquezas do ideal de transparência, tão em voga entre os ativistas contemporâneos. O voto secreto existe há certo tempo na democracia e se justifica sob o argumento de que o eleitor deve votar segundo suas próprias convicções, livre de possíveis pressões externas e coações. Trata-se de um direito defendido e aplicado em grande parte dos regimes representativos, citado inclusive na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU (Organização das Nações Unidas).
Acredito ser evidente o porquê de o voto secreto configurar direito apenas aos eleitores e não aos seus representantes. Existe a distinção autoexplicativa de que eleitores, ao escolherem seus representantes, atuam em nome próprio, ao passo que representantes, ao tomarem decisões, atuam em nome de seus representados. Se, diante disso, defender a prerrogativa do voto secreto aos parlamentares parece descabido, por outro lado, propagandear a transparência como solução da representação é absolutamente ingênuo. É preciso considerar a questão de um ponto de vista mais pragmático. Deixar aberta a informação é pouco se continuarmos a ignorar o debate mais prático sobre como fazer a informação chegar a quem interessa: a população.
Transparência é um pré-requisito mínimo, o desafio é fazer as pessoas enxergarem de fato. Quantas notícias surgem diariamente no Congresso Nacional que são friamente ignoradas? Não por desinteresse puro e simples, nem sequer pela desimportância dos assuntos, mas por indiferença aprendida. O iceberg está ficando menos denso, mas não menos pesado. O volume de informações que emerge ultrapassa nossa capacidade de assimilação e exauri nosso ímpeto de reagir ao que é relevante.
Para piorar, mesmo no atual estágio dos meios de comunicação, continuamos com a estúpida síndrome - que as mídias sociais prometiam curar e terminaram por agravar - de tratar um caso por vez, como se tivéssemos apenas um holofote: ou fui só eu que fiquei com a impressão de que o caso Feliciano anulou por completo o caso Renan, da mesma forma que Renan tinha roubado a atenção do Mensalão?
Acreditem ou não, isso é resultado de nosso modelo de representação política. Ainda não está claro se o modelo permite ao cidadão o luxo de ser indiferente, pois este tem um representante bem-intencionado e plenamente capaz de representar seus interesses, ou se este modelo depende de um cidadão-vigilante, dotado de um senso de dever republicano e disposto a sair às ruas ao menor sinal de ataque aos valores democráticos.
Antes que venham me dizer que a resposta fica no meio do caminho, a questão é que, ao fazer a distinção, fica claro qual tipo de cidadão o atual sistema está criando: um cidadão indiferente pelo motivo inverso, indiferente pois não tem confiança alguma em seus representantes.
Em nosso modelo de representação, importa pouco se o voto é aberto ou secreto. O que realmente importa é que os brasileiros não sabem para onde olhar. Não sabem quem fiscalizar, pois mal se lembram em quem votaram. Para se ter uma ideia, passados quatro anos das eleições, mais de 70% dos eleitores não se recordam em quem votaram para deputado federal, que supostamente têm maior atenção da imprensa. Imagine, então, qual é a estatística para vereadores!
Pouco se fala, mas o elemento mais importante da cidadania moderna está no olhar seletivo. A maneira mais irônica de ser cego é tentar ver tudo. Apenas quando selecionamos, nos tornamos conscientes do que vemos. E isto vale muito para a democracia. O frenesi em torno do voto secreto parlamentar ignora a raiz do problema. Mais uma vez estamos preocupados em garantir que certos direitos existam em princípio, mas não em como usufruir deles na prática.
O que efetivamente mudaria com a abertura de todos os votos? As pessoas começariam a fiscalizar efetivamente? As eleições seriam pautadas pela forma como o candidato votou? Já imaginou a campanha? "Eu votei sim na SCD xxx/20xx, disse não à PEC xxx/19xx e pedi vista ao PL xxx/20xx, sem falar na minha participação na CCJ e na CRA!"
Se não se sabe quem representa quem, é quase irrelevante o voto ser aberto ou secreto. O que acontece nesse cenário é que uns poucos fiscalizam outros poucos e a grande maioria dos representantes atua sem prestar contas à população. Com o sistema proporcional, reforçamos, dia após dia, a incapacidade pública de acompanhar o andamento da política no país.
Acabar com o voto secreto é só o primeiro degrau da longa escada de reformas políticas que o Brasil precisa subir. Não basta tornar o voto aberto; o voto precisa ser notório. Sem haver uma estratégia de canalização da atenção pública, o voto pode até não ser secreto, mas será sempre silencioso.
> Ricardo Borges Martins é formado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), com foco em cultura política e tendências democráticas. Com especialização em argumentação e influência social pela Université d’Aix-Marseille (França), é um dos organizadores do Movimento #EuVotoDistrital