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Verdadeiro ou Falso

Quando a maldição da múltipla escolha sai da escola

A múltipla escolha ultrapassou os muros escolares e se tornou uma praga, pois com ela ganhamos a opção de responder às perguntas sem precisarmos mais pensar tanto

Educação  –  19/11/2018 18:26

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Vamos refletir sobre um interessante modelo iniciado há décadas na escola que não estimula a necessidade de se pensar?
Por exemplo, as questões para o estudante responder simplesmente assinalando se as afirmativas são verdadeiras (V) ou são falsas (F).  Aparentemente o estudante teria que ler com muito cuidado e atenção para responder, mas na prática não é isso que ocorre na maioria das vezes.
Afirmo isso, porque nesse caso, quantas vezes, nós professores, corrigimos provas com essas questões sendo respondidas com um “X”, e aí ficamos sem saber o que pensar, pois não compreendemos claramente o que significou para o aluno as opções assinaladas por ele com “X” (ou seja, se aquela opção era verdadeira ou falsa). 

Mas, é verdadeiro (V) ou falso (F) que mesmo diante desses fatos, nós professores, continuamos elaborando questões assim, pois são muito mais rápidas e práticas para no dia a dia corrigi-las? 

Assinale sua opção (V) ou (F) para a minha provocação, mas justifique para você mesmo as razões da sua resposta, por favor. 

A grande verdade embutida no exemplo descrito acima, por sinal também muito comum nos dias de hoje, é que para nós professores, este aluno que marca um “X” onde deveria grafar sua escolha entre um “V” ou um “F” simplesmente não entendeu o que foi solicitado. Ou ainda, apenas leu superficialmente a pergunta, ou não interpretou o questionamento ou o pior, não foi estimulado ou provocado para pensar e responder, elaborando e construindo uma resposta pertinente.  

Com o uso das novas tecnologias essa prática se propagou de forma sutil, porém intensamente pela sociedade. Afinal, o cerne da informática usa a linguagem binária, ou seja, positivo ou negativo, sim ou não, verdadeiro ou falso, confirma ou anula entre seus disfarçados comandos encontrados nos ambientes visualmente amigáveis das telas dos dispositivos ao alcance de nossas mãos. 

A verdade é que muitas coisas em nossa vida atualmente se decidem com um clique. Uma múltipla escolha automática que mescla o virtual com o real

A minha crítica aqui não é uma mera preocupação com a nobre arte de ser um professor que deve estimular seu aluno a pensar, e sim, com o nosso cotidiano como consumidores e cidadãos produtivos, resultante deste estímulo. 

Pois afinal, qual o custo e o que significa, na prática, essa crescente limitação nas recentes gerações em realizar cálculos básicos ou na dificuldade de interpretação das informações grafadas ou ditas e que estão rapidamente povoando a nossa vida real e a nossa sociedade não virtual? 

Analise a qualidade dos serviços que recebemos cotidianamente e tente abstrair uma correlação entre o baixo exercício da interpretação e elaboração textual e o mundo real e caótico no qual estamos vivendo hoje em relação ao atendimento ao consumidor.

Ou seja, qual seria o real prejuízo causado por empregados, funcionários, prestadores de serviços, que não conseguem interpretar e responder a uma simples pergunta discursiva seja ela oral, ou escrita, até mesmo em um e-mail?

Ou ainda, qual seria o real prejuízo causado por estes trabalhadores que não conseguem realizar cálculos simples?

 

Reconheço ser quase impossível fazermos uma estimativa real sobre o montante destas perdas econômicas, mas que algum prejuízo certamente existe isso é um fato incontestável. Mas, como chegamos até esse ponto? 

Será que historicamente algumas estratégias de ensino e avaliação de aprendizado podem ter nos auxiliado a chegar até esse triste quadro, onde o exercício de se pensar foi relegado a um segundo (ou último) plano? 

Esta é uma provocação à reflexão que faço para juntos pensarmos.

Para tal, sugiro retroagirmos apenas meio século e analisarmos algumas práticas docentes que podem explicar parcialmente esse problema oriundo da redução de exercícios que estimulam o raciocínio lógico. 

Como era o ensino de Matemática na década de 60?

Ao pegarmos um livro ou um caderno de um aluno do ensino básico dessa época, verificaremos que existiam inúmeros exercícios de cálculos assemelhados a este: 

Um comerciante vendeu um fogão por R$ 100,00.
O custo deste produto é igual a 4/5 do preço de venda.
Qual o lucro do comerciante? 

- Céus! Dirão muitos professores e até alguns pais de alunos. 

Afinal, trabalhar com frações para achar o preço de venda, possivelmente era um exagero, mesmo em nome de um estímulo ao raciocínio lógico que deveria ser exercitado pelo aluno.

Até hoje cálculos que envolvem frações é algo temerário para se aplicar em sala de aula em qualquer nível de ensino. 

Agora, verifique um livro ou um caderno de um aluno do ensino básico da década seguinte (de 1970 até 1980). Facilmente notaremos que começa a surgir uma interessante tendência de se auxiliar o aluno para que ele não mais precisasse exercitar “tanto” o seu pensamento.

Perceberemos que os exercícios começam a ser simplificados como, por exemplo, encontraremos algo similar a: 

Um comerciante vendeu um fogão por R$ 100,00.
O custo deste produto é igual a 4/5 do preço de venda, ou seja, R$ 80,00.
Qual o lucro do comerciante? 

No hipotético exemplo acima, a inclusão da resposta do cálculo da fração, já no corpo da questão, certamente evitaria maiores dissabores ao professor na hora da correção.

Contudo, a referência à fração ainda continuava lá no enunciado do exercício (sem a função de incentivar o seu próprio cálculo, é claro), mas ainda estava lá. 

Então, na década de 80, essa tendência à simplificação se acentuou um pouco mais ainda, sendo possível encontrar nos livros e cadernos desta geração esse mesmo exercício (ou algo bem assemelhado), porém, já com um enunciado mais curto e objetivo e que exclui a citação da fração (afinal, ela “não precisa” mais ser calculada): 

Um comerciante vendeu um fogão por R$ 100,00.
O custo deste produto é igual a R$ 80,00.
Qual o lucro do comerciante? 

Finalmente, na década de 90 a praga da “múltipla escolha” invadiu as nossas vidas e, possivelmente, o mesmo exercício deve ter passado a conter em provas e avaliações algo assemelhado ao seguinte texto: 

Um comerciante vendeu um fogão por R$ 100,00.
O custo deste produto é igual a R$ 80,00.
Escolha a resposta certa para o lucro do comerciante?
A – (  ) R$ 20,00          B – (  ) R$ 40,00
C – (  ) R$ 60,00          D – (  ) R$ 80,00
E – (  ) R$ 100,00 

Basta pegar os cadernos, provas e exercícios feitos de alguns estudantes do ensino básico dessa geração (principalmente do ensino público) para atestar essa afirmativa em relação à invasão da “múltipla escolha” no ambiente escolar. 

Curiosamente, nesse exato momento e para desespero docente, um grande número de professores percebeu que a chance de um aluno errar era altíssima, caso desconhecesse parcialmente o conteúdo ministrado.

O pior, é que esse erro não dava margem ao professor para identificar o grau desse desconhecimento em relação ao que foi perguntado. 

Apenas passou a existir o acerto ou o possível e quase inevitável erro. 

Todos nós sabemos que sempre que um aluno tenta acertar a resposta, apostando na sorte, em uma questão desse tipo, a chance de erro é de aproximadamente 80% (para 5 opções de respostas).

Não é a toa que este modelo de questão é usado em muitos concursos ou avaliações, nos quais é necessário se excluir o máximo de candidatos por causa das poucas vagas oferecidas.

Uma grande ilusão para os alunos que optarem pela sorte, pois, por exemplo, em uma prova com 10 questões desse tipo, a chance de se acertar a metade dessas questões “chutando” pode ser matematicamente algo em torno de 0,03%.  

Obviamente, a quantidade de notas muito baixas cresceu assustadoramente, então, a partir dos anos 2000 surge a “máxima” das simplificações para o exercício de se pensar, com o mesmo exercício sendo enunciado possivelmente da seguinte forma: 

Um comerciante vendeu um fogão por R$ 100,00.
O custo deste produto é igual a R$ 80,00.
O lucro deste comerciante foi de R$ 20,00?
(   ) Sim       (   ) Não 

E assim, se reduziu a margem de erro da questão para aproximadamente 50% (para apenas 2 opções de respostas).

O problema é que desta forma, com o passar do tempo também reduzimos também sistematicamente a capacidade de raciocínio lógico de algumas gerações de brasileiros, quando tiramos deles a oportunidade de fazê-los pensar, de exercitar seus pensamentos um pouco mais além do básico. 

Retiramos, a cada simplificação oferecida, o salutar exercício de pensar em como caminhar rumo às soluções que lhes serão exigidas, posteriormente na vida.

E isso, infelizmente, foi construído e se propaga cotidianamente em nossa sociedade, em maior ou menor grau, muito além dos muros da escola. 

0educa318

Para refletirmos melhor sobre as possíveis consequências do que foi descrito acima, vamos alinhavar mais algumas informações muito relevantes.
Considerando apenas os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2008, que informou que existiam naquele ano no Brasil quase 30 milhões de analfabetos funcionais com mais de 15 anos (PNAD - IBGE 2008), logo, o fenômeno descrito anteriormente sobre as possíveis ou grandes perdas econômicas não deveria ser surpresa para ninguém.Isso porque estas pessoas, analfabetas funcionais em 2008, ou estão tentando entrar ou já se encontram dentro do mercado de trabalho.
Então, só Deus sabe como elas estão sobrevivendo, ou o pior, como estes brasileiros e brasileiras estão atuando dentro dele (considerando o mercado a partir do ano de 2015). 

Afinal, este fenômeno cruel apenas confirma a íntima correlação entre o ínfimo investimento feito na qualidade da Educação como um todo e a consequente qualidade da nossa mão de obra em inúmeros setores. 

Por outro lado, também justifica porque todas as empresas de todos os setores e portes, devem se preocupar, e preferencialmente, se envolverem e investirem para a resolução desse sério problema e muitos outros existentes no atual âmbito educacional

É duro ter que reconhecer, mas oferecer boa qualidade na Educação é algo que afeta o futuro de todos sem exceção, sejam empresários, empregados ou simplesmente consumidores.  

Por exemplo, a superficialidade ou incoerência das respostas emitidas, sem o exercício de raciocínio ou da interpretação mais ampla sobre o que foi realmente indagado, é indiscutivelmente algo cada vez mais presente no dia a dia e na relação de qualquer cliente com as inúmeras empresas brasileiras. 

O pior é que um consumidor ao perguntar algo, demonstra interesse ou até predisposição em consumir e assim movimentar a economia nacional, gerando ou mantendo empregos. Mas isso em geral, também não é plenamente compreendido por quem o responde.

Afinal, o exercício de pensar mais amplamente foi sistematicamente simplificado desse atual funcionário em seu dia a dia desde seus tempos escolares. 

Para ilustrar melhor esse cenário, encerro esse texto contando dois episódios reais que vivenciei no ano de 2015, e que infelizmente, não são tão incomuns assim hoje em dia na vida de qualquer cidadão brasileiro. 

No inicio daquele ano, comprei em uma grande loja, um produto que custava R$ 15,70. Dei à caixa R$ 20,00 e mais 70 centavos, para evitar receber mais moedas de troco.
Por algum motivo a tela da máquina registradora “congelou” e não apresentou o resultado da operação. 
A funcionária pegou o dinheiro e ficou olhando para a máquina registradora, aparentemente sem saber o que fazer. Tentei explicar que ela deveria me dar apenas 5,00 reais de troco, mas ela não se convenceu e chamou a supervisora para ajudá-la.
Ficou com lágrimas nos olhos enquanto sua chefa (sem o menor tato ou didática) tentava explicar, enquanto ela, aparentemente, continuava sem entender.
Obviamente, aquela funcionária havia sido treinada para dar exatamente o troco que a tela da máquina registradora determinava. Qualquer coisa sugerida e que estivesse fora dessa rotina era algo quase impraticável de ser processado pelos seus neurônios.
Isso porque eles não tinham sido adequadamente exercitados para fazerem isto com razoável habilidade, independente daquela pessoa possuir um certificado escolar que teoricamente até lhe habilitava fazê-lo. 

Em outro episódio e também numa outra grande loja, comprei dois produtos, um custava R$ 12,60 e o outro R$ 7,10. Quando cheguei ao caixa, houve uma queda de luz e a máquina registradora (leia-se tela do computador) parou de funcionar.
Logo, tanto o recebimento quanto o troco teve que ser feito de forma manual.
Dei R$ 20,00 e aguardei pacientemente a balconista fazer todas as contas (?) em um bloco de papel, e depois dela, inclusive, conferir seus próprios cálculos escritos por duas vezes, finalmente me dar R$ 1,30 de troco.
Falei que estava me dando troco a mais e devolvi R$ 1,00, ficando apenas com os 30 centavos (que era o troco correto).
Ela guardou o dinheiro, mas, percebi claramente que ela, apesar de tê-lo recebido, aparentemente também continuava sem entender os seus próprios cálculos.
Pela idade que estas jovens funcionárias aparentavam ter naquele ano de 2015, certamente no ano de 2008 (ano em que chegamos à marca de 30 milhões de analfabetos funcionais, segundo o PNAD - IBGE 2008), elas deveriam ter entre 15 ou 16 anos.
Portanto, naquela época ainda estavam possivelmente na escola estudando ou supostamente aprendendo e se preparando para o mercado de trabalho que temos agora.  

Encerro essa reflexão com apenas mais uma irônica provocação:
- Considerando somente este último episódio, seria apenas de R$ 1,00, o prejuízo causado a toda a sociedade pelos empregados, funcionários ou prestadores de serviços, que simplesmente não conseguem mais interpretar ou produzir um simples texto, ou fazer corretamente um simples cálculo?  

> Texto inspirado e parcialmente extraído do livro “Como Educar uma Criança Chamada Brasil” - Flavio Chame Barreto; editora CDA; 2017; São Paulo  

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Por Flavio Chame Barreto  –  flaviocbarreto.bio@gmail.com

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