(Fotos: Divulgação)
“Poesia, para mim, é mais do que um gênero literário ou regras de métrica e rima. Acredito que poesia é uma forma de olhar e sentir o mundo. Algo próximo do olhar de descoberta que as crianças têm”.
Foi preciso que o mundo inteiro parasse para nos parar. Máscaras cobrem nossos rostos e descobrem nossas almas. Tiramos nossas vendas na medida em que aprendemos a ouvir e ver o trabalho daquele artista que estava tão perto de nós e nem percebíamos, pois enquanto todos fazemos doutorado em pijama e o silêncio ganha as estradas das cidades libertando as vozes da natureza e de todas as artes, os meios digitais transformam-se num palco para a música que o vizinho canta da varanda de seu apartamento. A mesma varanda utilizada pelo ator para suas maravilhosas performances teatrais e as palavras bordadas dos poetas que enfeitam nossas almas. Tantas varandas vão colorindo nossos dias, abafando a nossa solidão. A coluna "Entretantos" vem buscando temperar esse momento nebuloso com esses personagens que dão sabor às nossas vidas através de suas poesias. Quem são esses artesãos de palavras que expressam a identidade brasileira em seus versos de excelência? Seja da varanda dos seus apartamentos, em sites de relacionamentos ou ainda impressos em papel, quem são esses encantadores de almas? Nossa "arteira" de hoje é gaúcha de porto Alegre. Seu nome é Jeane Bordignon, mas no ofício de costurar palavras, atende também pelo pseudônimo de Jeane B. Essa escritora, poeta, jornalista de profissão formada pelo UFRGS, contadora de histórias e artesã, perambulou com sua arte de poemar pelos saraus do Rio de Janeiro e contou histórias para a criançada, mas poetizar é sua profissão de coração, é através da poesia que se considera artista. São nos poemas que Jeane B. voa com as palavras, e foi através deles que foi premiada na edição de 2012 e 2013 do concurso "Poemas no ônibus e no trem" de Porto Alegre. Jeane B. lançou um livro em 2014, o "Brado Carmesin", um grito contra a opressão do sistema. Conheça um pouco dessa poeta, cujos versos transitam entre a delicadeza de um bordado e a força das palavras.
Confira a entrevista com Jeane B.
Quem é Jeane Bordignon?
Uma pessoa sensível que sempre teve necessidade de escrever e de expressar através da arte. Uma curiosa, uma alma inquieta, embora pareça calma. Uma mulher que ama as palavras e as cores.
Como foi o processo de dar vida à poeta Jeane B.?
Escrevo poesia desde criança, mas só passei a me sentir poeta de fato quando tive o primeiro poema publicado, na coletânea do concurso “Poemas no ônibus e no trem”, da Prefeitura de Porto Alegre. Os poemas vencedores também eram colados nas janelas dos ônibus e do metrô da cidade, e até aconteceu de algumas pessoas me procurarem nas redes sociais depois de ler minha poesia no ônibus. Mas ainda tinha muito receio em reconhecer-me poeta, muita timidez. Acho que Jeane B. só nasceu mesmo quando comecei a participar de saraus em Porto Alegre. Os primeiros foram do Gente de Palavra, um grupo do qual carrego amigos até hoje. Mas cheguei muito tímida, falando baixinho, e tive um incentivo valioso do poeta e organizador Renato de Mattos Motta para literalmente botar a voz pra fora. Em alguns meses comecei a perceber que eu levava jeito para dizer poesia. E com a ida para o Rio de Janeiro, que fervia de saraus, a Jeane poeta ganhou ainda mais força. Participei de saraus e eventos da Zona Sul à Zona Oeste. Nesse processo, minha poesia também ficou mais musical e sonora, mais rítmica.
De onde vem sua inspiração para escrever?
Pode vir de uma palavra, uma sensação, uma imagem… Em geral eu não busco a inspiração, ela é que me chega pedindo pra ir para o papel. Em qualquer hora e lugar. Já parei na calçada para pegar caneta e papel e anotar uns versos antes que os esquecesse. Já aconteceu de a inspiração vir de uma conversa, isso aconteceu com uma conversa nossa inclusive, e rendeu um dos poemas mais bonitos do meu livro.
Conte-nos um pouco sobre sua temporada no Rio de Janeiro.
Ir para o Rio de Janeiro era um desejo muito forte. Eu sentia que precisava conhecer essa cidade, e que lá encontraria muita arte. Tive a oportunidade de participar de saraus e eventos com diferentes linguagens artísticas na Lapa, Zona Sul, Zona Oeste, e até em Duque de Caxias. Foram experiências muito ricas. Conheci muita gente talentosa e que acredita na arte. E a mudança coincidiu com o processo de lançamento do meu primeiro livro, “Brado Carmesim”. Foi incrível poder divulgar minha poesia em várias partes do Rio. Também tive a oportunidade de ajudar a criar o coletivo Nós, as Poetas (facebook.com/nosaspoetas/), somente de poetas mulheres, que busca divulgar e fortalecer a participação feminina na poesia atual. E também pude aprender bastante sobre produção cultural, participando de workshops e seminários, e até colaborando na montagem de alguns eventos. Estar no Rio ainda me proporcionou conhecer de perto alguns amigos queridos que as redes sociais me deram, como você, a Ionara e o Wesley. Foram cinco anos muito intensos. Agora voltei para casa, para ficar mais perto da família, e felizmente estou perto dos meus pais, podendo cuidar deles, neste momento complicado que estamos vivendo no país. Mas o Rio de Janeiro mora no meu coração.
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"A poesia serve para a gente sobreviver a esse mundo tão áspero que nos cerca".
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Acredito que a arte é entendida muito pelo sentimento, e que o poeta, além de talento, tenha que ter carisma e vocação para transpor sentimentos para sua poesia. O que a Jeane pensa a respeito disso?
Poesia, para mim, é mais do que um gênero literário ou regras de métrica e rima. Acredito que poesia é uma forma de olhar e sentir o mundo. Algo próximo do olhar de descoberta que as crianças têm. E para ter esse olhar é preciso ter sensibilidade, é preciso permitir-se ser sensível e desprender-se das ideias pré-concebidas. Então concordo que carisma e vocação são fundamentais. Mas como qualquer forma de escrita e de arte, a poesia também exige transpiração, treino: só escreve bem que lê bastante e também pratica bastante.
De onde surgiu a ideia de contar histórias para crianças em saraus? Essas histórias tinham a ver com suas poesias?
Eu gostava de contar histórias para minha prima Júlia, 15 anos mais nova. Alguns anos depois, contava para meu sobrinho Pedro. E ele gostava do meu jeito de contar, dizia que eu sabia “fazer as vozes dos personagens”. Comecei a perceber que podia contar para outras crianças também. E algumas oportunidades surgiram. Ainda foram poucas vezes, mas foram momentos especiais, que eu espero vivenciar novamente algum dia. As histórias em si não tem a ver com minhas poesias, mas o livro que mais gosto de contar é “Chapeuzinho Amarelo” (Chico Buarque), que é escrito em forma de poesia. E tenho muita vontade de fazer algum projeto de poesia com crianças. Num dos eventos em que fiz contação, montei um varalzinho com poemas para crianças de diferentes autores, para que os pequenos pudessem escolher um para levar para casa. É algo que tenho vontade de elaborar melhor e fazer mais vezes. Tenho também o plano de publicar livros infantis, já tenho uma história escrita, mas que ainda não sei quando vai virar livro.
Como é seu processo de dar título às suas poesias? Ele vem antes, durante ou depois da criação dos versos?
Isso não tem uma regra, às vezes começa pelo título, em outras eu fico matutando um bom tempo até encontrar um título. Mas o mais comum é encontrar o título depois do poema pronto.
Eu, como poeta leiga, tenho muita dificuldade em dar títulos às minhas poesias, mas eu gosto de títulos que resumam em uma só palavra todos os versos da poesia e isso não é fácil de encontrar, salvo se a criação parte de um título, porém, na maioria das vezes a poesia é que grita dentro de mim antes que eu possa pensar nisso. As letras é que me comandam. Como acontece com você?
Também gosto de títulos curtos, de preferência com uma só palavra. E para mim também são as letras que comandam. Costumo dizer que a maioria dos poemas são quase como psicografia, os versos descem e eu só registro. Tem poemas que “descem” prontos. Mas também tem aqueles em que vem uma ideia e eu fico testando versos e palavras. Já aconteceu também de eu escrever dois versos e travar… E anos depois, ao reencontrar esses versos, ter a inspiração para continuar o poema.
Eu li o "Brado Carmesim" de cabo a rabo e uma emoção indescritível tomou conta de mim quando vi que um dos seus poemas foi dedicado à minha pessoa. Acompanho suas poesias na página "Voos e Palavras" também. Você tem uma habilidade muito grande de fazer com que suas poesias reflexivas sejam também caracterizadas pela leveza. Essa leveza pode ser entendida pelo fato de como você se vê como leitora que é?
Essa leveza talvez tenha a ver com minha personalidade quieta e reservada. E também acredito ser reflexo de só ter publicado meus poemas depois dos 30 anos, com mais maturidade. Como digo no poema “Brado Carmesim”, “a potência do grito está no que é dito”, as palavras podem ser afiadas e incisivas, e mesmo assim ditas com leveza e cuidado.
Fale um pouco sobre o "Brado Carmesim"
O “Brado” foi um sonho que se realizou. Sou muito grata à editora Penalux pelo trabalho lindo que fez, com uma arte gráfica que superou minhas expectativas, e toda a atenção no processo. Lançar um livro realmente é uma emoção indescritível. “Brado Carmesim” também é um filho que me enche de orgulho. Sem falsa modéstia, às vezes releio alguns poemas e me surpreendo de ter escrito versos tão fortes e delicados ao mesmo tempo. Mas o “Brado” é só o primeiro. Já tenho material para um segundo livro, mas ainda não posso ter previsão de quando irei publicar, porque ser escritor independente em nosso país é um desafio constante. Fico feliz de ter iniciado com um livro tão intenso que me permite trabalhar com ele por um bom tempo.
Existe alguma forma de separar a poesia da literatura?
A poesia pode ser uma forma de literatura, mas também pode ser maior do que a literatura. Um desenho, uma foto, uma música, uma coreografia de dança também podem ser poesia. Talvez por entender a poesia como algo que vai além das palavras sinto necessidade de me expressar de outras formas às vezes, arrisco uns desenhos, faço fotos… E o artesanato também faz parte disso. Podem dizer que outras formas de expressão artística não são poesia, mas quem pode dizer que não são, quando expressam a beleza e a sensibilidade?
Na sua concepção de poeta ou de leitora, a poesia serve pra quê?
A poesia serve para a gente sobreviver a esse mundo tão áspero que nos cerca.
Quais são as suas influências na poesia?
Tem muito de Mario Quintana e Cecília Meireles nos meus versos. São minhas maiores inspirações. Também amo Vinicius de Moraes, Drummond, Thiago de Mello, Manoel de Barros, Leminiski, Bruna Lombardi. Da atualidade, tenho me identificado muito com Rupi Kaur e Amanda Lovelace.
A "arteira" Jeane Bordignon também faz artesanatos. Como é, e que tipo de artesanato você faz?
Já me aventurei com pintura em tecido, EVA, colagem de papel, tentei aprender crochê e bordado, mas há alguns anos me encontrei no feltro. Em alguns momentos de necessidade cheguei a fazer peças para venda (presilhas de cabelo, chaveiros, pesos de porta), mas gosto mesmo de costurar para presentear. É uma forma de carinho. Fiz muitos bichinhos, fantoches e outros brinquedos de feltro para meu sobrinho Pedro, vários presentes para minha mãe e para outras pessoas queridas. No meu perfil do Facebook tenho um álbum chamado Arteirices, com algumas peças. E a metáfora da costura ou do bordado aparecem com certa frequência nos meus poemas, porque vejo a escrita como uma forma de costurar palavras. O escritor uruguaio Eduardo Galeano, em “O Livro dos Abraços”, questiona: “Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos?”. E eu me identifico com essa visão.
Agradecendo demais sua disponibilidade e aproveitando para dizer que sou muito sua fã. Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar sobre suas poesias? Deixe aqui seus os links para seus trabalhos
Eu que agradeço pelo carinho e pelo espaço. Quero convidar a todos para visitar e curtir minha página Voos e Palavras. E também para me seguir no Instagram: @jeanebordignon (tenho postado alguns poemas por lá). E se alguém quiser adquirir o “Brado Carmesim”, ainda tenho alguns exemplares. Pode entrar em contato pela página ou pelo e-mail jeanebj@hotmail.com