(Fotos: Divulgação/Cris Torres)
"O senso de democracia do Enem é altamente falacioso"
O Brasil experimenta consequências negativas geradas pela carência de investimentos no sistema educacional. Ineficientes, as atuais políticas de Governo e de Estado estimulam a exclusão e minam perspectivas sustentáveis de desenvolvimento social. As desigualdades proliferam mediante acesso limitado ao conhecimento e às artes. Neste período de afastamento social, devido à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), destaca-se um bom indicador. O mercado livreiro aponta salto expressivo no consumo do formato digital. Márwio Câmara é escritor, professor, crítico literário e jornalista brasileiro. Bacharel em Comunicação e licenciado em Letras, com especialização em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Candido Mendes (UCAM). Atualmente, é pós-graduando em Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Portuguesa. Autor de “Solidão e outras companhias” (Editora Oito e Meio), finalista do 1º Prêmio Rio de Literatura, na categoria Novo Autor Fluminense. Leciona Língua Portuguesa, Literatura e Produção Textual para escolas de Ensino Básico e preparatórios. Idealizador do recém-inaugurado The Quarentena, uma página especializada em cultura e livros.
Confira a entrevista com Márwio Câmara
. De que maneira a educação e a escrita, como expressões artísticas, começaram a fazer parte de sua vida?
Meu interesse pela escrita começou desde muito cedo, no mesmo período em que me alfabetizava. Sempre tive um grande fascínio pelos livros. Ainda que eu não soubesse ler direito, gostava do objeto em si e daquele emaranhado de palavras com imagens que continha dentro dele. Essa representação do livro, enquanto forma lúdica que nos leva para diferentes lugares sem sair de casa, criou dentro de mim esse sentimento que cultuo até os dias de hoje. O livro era uma possibilidade de viver para além das minhas limitações de menino da periferia. Era a minha fantasia, o meu sonho. Passei a infância inteira escrevendo livros que eu gostaria de ler através dos cadernos que pedia para o meu pai comprar. Quanto à educação, acredito que a escola também tenha influenciado o meu lado criativo, sobretudo nos primeiros anos do Ensino Básico. Mas a minha entrada para a universidade, logo após o término do Ensino Médio, foi um momento decisivo de renúncia gradual daquele menino genuíno que eu era, com uma vivência muito limitada de mundo e, é claro, de conhecimento. Tive a sorte de estudar em uma faculdade de comunicação muito ligada ao mundo das artes, sobretudo da literatura. Conheci alguns dos meus escritores favoritos nas aulas de Língua Portuguesa e Teoria Literária. Como eu não tinha dinheiro nessa época, passei a descobrir grandes obras da literatura brasileira na biblioteca da faculdade.
. Você acredita que teremos condições ideais para realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), diante à realidade imposta pela pandemia do novo coronavírus?
É uma discussão bastante pertinente, visto que estamos passando por um momento deveras conturbado. Dentro de uma perspectiva de país de Terceiro Mundo que é o Brasil, sabemos que a desigualdade social ainda marca o nosso povo brutalmente. As novas tecnologias da comunicação trouxeram uma possibilidade da educação não parar como as demais máquinas. Professores e alunos vêm se adaptando a esse novo modelo de ensino, que é uma realidade global, mas que ainda carece de uma efetiva absorção por parte de muitas crianças e jovens. O grande problema em todo esse processo é que a desigualdade social e a falta de democracia ficam ainda mais evidentes com tudo isso. Nem todas as famílias gozam do privilégio das novas tecnologias e do acesso à internet. Enquanto as escolas particulares têm conseguido se virar de forma bastante razoável com esse novo processo educacional, vemos um cenário muito desfavorável dentro da escola pública, já que é ali que se encontram os retratos da miséria e da carência social brasileira. Logo, isso afeta diretamente os jovens vestibulandos das periferias do Brasil. Adiar o Enem é a solução mais viável nesse momento. Trata-se de uma prova trabalhosa, que exige bastante esforço do candidato. Queria colocar aqui, entre parênteses, que o senso de democracia do Enem é altamente falacioso. Eu o vejo apenas como mais uma estrutura de poder separatista, fantasiada de alguma coisa boa. Não acho que a melhor maneira seria afrouxar as medidas de acesso à educação superior, porém tratar de forma mais eficaz e verdadeiramente responsável a base da educação brasileira.
. Qual paralelo você traça entre a pandemia provocada pela Covid-19 e as políticas educacionais brasileiras?
Há muita coisa em questão: a adaptação do aluno dentro de um ambiente virtual de aprendizagem e, sobretudo, a carência de um equipamento eficiente e com acesso à internet entre os mais pobres. O Governo deve pensar em todos, e sobretudo na população mais vulnerável. Tenho dado aulas a distância e observado uma ótima absorção por parte dos meus alunos do ensino privado. Mas há problemas, evidentemente, porque o EAD demanda muito mais disciplina e autonomia do que o presencial. É preciso construir dentro de casa um ambiente que torne a rotina de estudos possível. Além disso, temos a outra fatia do bolo que carece de um acesso remoto de qualidade. Se nos deparamos com um panorama em que uma parte considerável dos estudantes passam por problemas dentro dessa nova estrutura educacional, precisamos repensar nas políticas que foram adotadas em tempos de pandemia. E, é claro, se uma criança ou um jovem da periferia, sem acesso à internet, fica de fora desse processo, perdemos todos enquanto nação.
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"A literatura não tem uma função prática e delimitada como a maioria das coisas, ela abarca tudo".
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. Como você avalia a implementação do Ensino Presencial Virtual (EPV)?
É uma medida necessária para que a escola e a educação brasileira não se saiam prejudicadas. Os nossos estudantes precisam manter suas rotinas diárias de estudo. Faz parte do processo do mundo civilizado, que precisa construir uma sociedade substancialmente ativa, pensante, produtora de cultura e politizada. Como professor, é a primeira vez que passo por essa experiência da educação remota, embora eu já conhecesse as engrenagens por ela estabelecidas. Na educação de nível superior já é uma realidade eficiente para alguns cursos, porque beneficia quem precisa trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Mas no Ensino Básico, de um modo geral, é um modelo de gestão educacional ainda bastante complexo, até porque o ensino presencial democratiza ou está mais próximo de democratizar o acesso à educação. O espaço da escola física é extremamente necessário, porque temos a união da construção de conhecimento feita entre professor e aluno, com as interações sociais em grupo que são ali estabelecidas.
. Quais medidas você julga eficazes no combate à violência dentro das instituições de ensino?
A violência nas escolas é um fato que merece ser bastante debatido por todos que fazem parte desse processo educacional, porque no Brasil ainda temos uma escola pública bastante deficiente e negligenciada pelo Estado, que não dá conta de mediar diferentes subjetividades ali encontradas. A violência é uma manifestação simbólica que envolve muitas camadas, e ela se defronta com a própria violência que vem de fora da escola, na maioria das vezes dentro de casa. Porém, os professores não podem se tornar alvos ou reféns dessa animalização do comportamento humano. A escola não dá conta de resolver todos os problemas da sociedade, mas o Governo poderia dar uma maior atenção a essa rede pública de ensino que carece do básico. É fundamental que uma instituição escolar dialogue com as famílias e a comunidade, e que seja amparada também por psicólogos que dediquem parte de seu tempo para avaliar e auxiliar alunos com históricos problemáticos. Não podemos deixar que uma escola adoeça um professor, porque contamos com ele para o efetivo processo educativo que tanto almejamos para as nossas crianças e jovens. A violência em todas as esferas, e sobretudo na escola, é sempre um alerta vermelho. E precisamos, sim, ir de encontro ao problema e deter tal prática, com medidas que não só se concentrem em punições efetivas, mas em resoluções que possam beneficiar professores e alunos.
. Ler é convite à liberdade, ao aparelhamento crítico e inventivo. Qual o papel da literatura na desconstrução e reconstrução política e social na atualidade?
Sempre digo aos meus discentes que a literatura é o exercício mais lúdico e eficaz à prática da empatia, esse gesto tão caro de se colocar no lugar do outro, mesmo que esse outro seja o extremo oposto da gente. A literatura sempre terá um papel decisivo no constructo social do indivíduo, porque ela nos fornece conhecimento das mais diferentes esferas. Nós não lemos apenas para dominar nosso idioma ou para termos mais acesso à cultura letrada ou fruição estética, lemos para conhecer melhor o mundo e a gente mesmo. A literatura nos revela muito mais do que a gente imagina. Nos torna seres sensíveis à experiência humana. Ela é essencial para a não alienação do indivíduo. Como a literatura não tem uma função prática e delimitada como a maioria das coisas, ela abarca tudo. Logo a literatura é a nossa própria vida manifestada em linguagem artística, com os seus mistérios, interesses, paixões e fantasias.
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"É importante que novos mecanismos sejam estabelecidos para que as livrarias mantenham-se vivas e à disposição dos leitores".
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. Quando nasceu a ideia de fazer “Solidão e outras companhias”? O que há de especial na obra?
“Solidão e outras companhias” é o meu primeiro livro de ficção, que demorou quatro anos para ser gestado. Foi como uma espécie de laboratório para mim. À medida em que ia escrevendo, descobria as possibilidades de me comunicar de forma criativa através da linguagem. Descobri no meio do processo que era um livro de contos com uma unidade romanesca. Todas as narrativas estão, de alguma forma, interligadas. Enquanto eu editava ainda o livro, meu amigo e também escritor Maurício de Almeida havia me sinalizado isso. Depois de publicado, outro amigo poeta de Caxias do Sul, o Rafael Iotti, quando terminou de ler, me enviou uma mensagem perguntando por que a editora não o catalogou como prosa brasileira, já que o livro vai muito além do gênero contos, e eu concordo com eles. Sobre o projeto em si, eu quis abordar sobre a diluição das barreiras entre o real e o ficcional, dialogando com outras expressões artísticas, como a música, a pintura e o cinema, por exemplo. O livro traz personagens que, no fundo, estão sempre tentando dar sentido em suas vidas e tendo que lidar com a solidão.
. Desde 2019, o mercado editorial brasileiro vem passando por crises das redes de livrarias Saraiva e Cultura. Até que ponto a Amazon e a política cultural federal influenciam neste panorama?
Com a paralisação da compra de livros feita pelo Governo Federal, sabemos que o mercado editorial tem sofrido bastante de lá pra cá. É triste nos depararmos com a falência de algumas grandes redes de livrarias, porque acho tais espaços ainda muito importantes para o fortalecimento da leitura no Brasil. Eu não sou um especialista no assunto, mas as editoras, sobretudo, precisam criar novas formas de comércio, até porque a produção de livros não pode parar, e para isso é necessário que haja venda. Não vejo a Amazon como um risco, porém como mais uma opção de oferta. É importante que novos mecanismos sejam estabelecidos para que as livrarias mantenham-se vivas e à disposição dos leitores.
. Como a Secretaria de Estado de Cultura pode incentivar os municípios a desenvolverem práticas educacionais e artísticas sustentáveis em suas localidades?
Estamos passando por um momento em que o setor cultural não tem sido valorizado como deveria em nosso país. A educação e a cultura são pilares fundamentais da formação humana. Tal como o esporte, elas são capazes de mudar o horizonte de muitas vidas. Precisamos incentivar a criança e o jovem a sonhar e acreditar em seus potenciais. A arte proporciona desenvolver sensibilidade, autoestima, senso crítico e valores éticos. Eu acho que é dever da Secretaria de Cultura desenvolver práticas educacionais e artísticas para a comunidade local. Esse incentivo deve ser feito através de cursos e oficinas gratuitas, e também por meio da promoção de espetáculos de música, dança, teatro, cinema e feiras literárias para todos. Educação e cultura não deveriam ser tratadas como privilégio, e sim como direitos básicos de qualquer cidadão. A gente não quer só comida, não é mesmo?