Publicada: 20/12/2017 (10:26:50) . Atualizada: 14/01/2018 (00:37:27)
(Foto: Reprodução/Facebook)
De 3 de novembro a 16 de dezembro, foi apresentado o espetáculo "Mama Pérola"
“Dessa troca, penso que a mutualidade do aprendizado sobre os valores humanos se destaca. Nesse sentido, o que eu levo é o que fica”. O diretor do projeto Memória Histórica: Testemunho em Cena. A Memória da Cidade Revelada Pela História dos Seus Espaços Públicos, Frederico Nepomuceno, 40, resume assim a experiência vivida em Barra do Piraí.
O projeto foi realizado durante quatro anos consecutivos no município, sempre em períodos de três meses. Em 2014, no Casarão de Ipiabas. Nos três anos seguintes, no prédio da antiga estação ferroviária, no Centro da cidade. Quatro espetáculos foram criados: “Tempo de travessia” (2014), “Não posso ficar!” (2015), “Isso aqui o que é?” (2016) e “Mama Pérola” (2017).
Com o próximo destino definido, Paris, ele conta que o projeto está ligado à sua pesquisa doutoral, desenvolvida na Universidade Paris 8 Vincennes / Saint-Denis e em cotutela com a Universidade Federal do Rio de Janeiro.
- Escolhi a cidade de Bara do Piraí como campo de pesquisa e comecei o projeto em 2014. O interesse em desenvolver o projeto nasceu após constatar a negligência com o patrimônio público arquitetônico e cultural, a partir da existência de diversos prédios históricos abandonados na cidade, mas também a ausência de um teatro e de práticas teatrais regulares no município.
Nessa perspectiva, o objetivo do projeto, segundo ele, é o de ocupar artisticamente esses prédios, de restituir as suas qualidades de espaços públicos e de reabilitá-los no espaço sociocultural barrense, por meio de uma ação teatral.
- Essa ação trabalha sobre a conscientização coletiva do estado de degradação do bem público, ao mesmo tempo que fomenta o desenvolvimento de práticas artísticas e culturais com a reabilitação temporária desses prédios (período da residência artística). O teatro é então analisado amplamente como uma ação mobilizadora e participativa, a partir do momento em que a população se federa e ocupa esses prédios para realizar processos coletivos de criação teatral - enfatiza.
Na prática, explica Nepomuceno, cada processo de criação segue um cronograma de atividades circunscrito pelos três meses de residência. O prédio é o elemento central da criação do espetáculo. O contexto social, histórico, cultural, econômico e político no qual o prédio está inserido influencia a encenação, a dramaturgia, a cenografia, o figurino, a música, a atuação, a iluminação etc.
- A arquitetura e a história do prédio são poetizadas sob a ótica de uma dramaturgia espacial, itinerante, que convida o espectador a viver ludicamente uma experiência sensível caracterizada por uma expressão cênica singular. No entanto, a ação teatral propõe uma organização coletiva do trabalho que transborda o aspecto puramente artístico. Limpeza e manutenção do local constituem as bases do funcionamento da ação, no intuito de responsabilizar os participantes quanto aos meios de produção e de realização do projeto.
Confira a entrevista com Frederico Nepomuceno
Esse projeto percorre vários países? Já passou por onde e o que vocês deixaram de "semente cultural" em cada um desses lugares?
Esse projeto, como disse, teve início em Barra do Piraí, em 2014. Evidentemente, ele é fruto de pesquisas realizadas anteriormente e, notavelmente, sobre meus estudos e experiências teatrais feitas em Paris quando ainda cursava o mestrado. No entanto, desenvolvo outros projetos durante o período em que eu não venho trabalhar em Barra do Piraí. Sou professor na Universidade Paris 8, onde dou aulas práticas sobre processos coletivos de construção cênica e dramatúrgica em espaços não-convencionais do teatro.
No primeiro semestre de 2017, trabalhei no prédio do antigo hospital Saint-Vincent de Paul, em Paris, e desativado em 2012. Na ocasião, realizei um processo coletivo de criação teatral com 13 estudantes da universidade Paris 8 e com oito imigrantes africanos que estavam alojados nas dependências desse antigo hospital. Criamos o espetáculo “Yassa” com base nos testemunhos dos imigrantes sobre a travessia de barco da África para a França pelo Mar Mediterrâneo, e sobre a história do hospital desativado que hoje os abriga.
No primeiro semestre de 2018, será a ocasião de desenvolver um outro projeto com os estudantes da universidade em um terreno baldio de 5.000m², no seio de um dos departamentos da região parisiense que apresenta atualmente um dos mais altos níveis de violência e que será o palco de profundas transformações urbanas para sediar os jogos olímpicos de 2024 em Paris. Com a população local de Saint-Denis, hoje, majoritariamente afrodescendentes, realizaremos um processo coletivo de criação do espetáculo “Montjoie! Saint-Denis!”, que trabalhará sobre a história do bairro Montjoie, mesclando a lenda do martir Saint-Denis, patrono de Paris, e dos reis da França com seus gritos de guerra “Montjoie! Saint-Denis!”, para confrontá-la aos heróis modernos do esporte.
Sendo assim, as experiências se sobrepõe. Após participar de duas conferências, uma em Montreal (2016) e a outra em Paris (2017), onde tive a oportunidade de apresentar as análises da minha pesquisa realizadas em Barra do Pirai, o projeto ganhou visibilidade e despertou o interesse de instituições internacionais.
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"Pude constatar nesses quatro anos em que trabalhei em Barra do Piraí a ausência de uma política cultural sólida no município. A falta de estrutura política e cultural dificulta o desenvolvimento das práticas artísticas e das atividades culturais locais. A inexistência de uma classe artística, a desarticulação dos atores culturais, a ineficiência na gestão pública, se apresentam como sintomas de uma desordem generalizada do campo sociocultural, que se reflete claramente por exemplo no descaso com o patrimônio público de valor histórico e cultural. Assim, espero que se alguma semente foi deixada pelo projeto, que ela germine e contribua para a transformação dessa realidade".
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Em Montreal, trabalho na elaboração de um projeto que será realizado no antigo centro penitenciário da cidade construído no século XIX. Os prédios que constituem o complexo penitenciário, desativado desde 1989, são classificados como patrimônio cultural histórico e arquitetônico canadense. O convite para realizar esse projeto surgiu de representantes do Ministério da Cultura do Canada presentes na conferência, e terá início em 2019.
A publicação de artigos sobre o projeto de Barra do Pirai em revistas científicas em Portugal (antropologia), no Canadá (literatura) e na França (sociologia) deram ainda mais visibilidade à minha pesquisa.
A direção do Festival de Teatro Internacinal de Argel, o Ministério da Cultura da Argélia e a Unesco, oficializaram o convite para participar da décima edição do festival no segundo semestre de 2018.
Uma residência artística de três meses será então realizada no antigo bairro da Casbah, na cidade de Argel. Bairro histórico, tombado pela Unesco como patrimônio da humanidade em 1992. Esse projeto contará com a participação do músico barrense Josemar Alves Junior, que se destacou nos quarto anos do projeto desenvolvido em Barra do Piraí.
Por que Barra do Piraí foi a cidade escolhida para esta etapa do projeto?
Concluo em 2017 a quarta e última etapa do projeto. A evolução das etapas permitiu transformações metodológicas que podem ser observadas na sequência desses quatro anos. A ação teatral se mostrou transversal e possibilitou a expansão do projeto na direção de outras manifestações artísticas. O prédio que outrora serviu de palco unicamente para a criação de espetáculos teatrais se transformou em um lugar cultural para abrigar mais de 20 atividades artísticas programadas durante dois meses em uma agenda cultural polivalente.
Espetáculos teatrais; shows de música; ateliês de flauta e de capoeira; oficinas de teatro; workshop de dança; curso de dança urbana; apresentações de jongo, de orquestra, de coral, de literatura; curso de línguas e de figurino; exposições de fotografia e de pintura; a construção de uma cafeteria; todas essas atividades deram vida ao prédio da estação durante os últimos três meses.
Como funcionaram as etapas até chegar a esse ponto em Barra do Piraí? Quantas pessoas envolvidas (da cidade e de fora)?
Todos os anos eu convido artistas e pesquisadores estrangeiros para residir em Barra do Piraí e trabalhar no projeto. Este ano, trouxe uma equipe de nove pessoas (cinco estudantes em teatro da universidade Paris 8 e duas pesquisadoras, uma em teatro e a outra em sociologia e urbanismo). Entre os habitantes de Barra do Piraí, podemos contar com uma equipe 15 pessoas fixas para este ano.
Vocês enfrentaram questões burocráticas para implementá-lo em Barra? Que análise vocês fazem dessa questão, no que se refere à implementação do projeto em cada país?
Sim, algumas questões burocráticas foram vivenciadas para implementar o projeto em Barra do Piraí. No entanto, essas questões se diferem em função da estrutura político-social de cada país e/ou cidade. Em Barra do Piraí, me parece que essas questões são menos estruturadas. Existe uma certa deselegância da instituição pública no que diz respeito ao acolhimento dos artistas na cidade, e uma negligência no contato com a população. Esses quatro anos de trabalho foram executados sem nenhum apoio. Apesar de ter sido solicitada por diversas vezes, a instituição pública não soube dialogar com os artistas durante a estada no período de residência e muito menos com a sociedade civil que esteve federada em torno do projeto.
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"Assim, se o projeto se mostrou capaz de mobilizar e organizar os participantes, de federar e estruturar um projeto cultural, a instituição pública se mostrou ausente para entender as necessidade dessa organização e incapaz de se aproximar para extrair dessa experiência métodos que contribuam para a estruturação de uma política cultural. A semente cultural precisa ser regada para dar frutos".
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De 3 de novembro a 16 de dezembro, às 20h, foi apresentado o "Mama Pérola". O que é esse espetáculo?
O espetáculo “Mama Pérola” faz uma satira do contexto político brasileiro atual. Uma interseção dessa realidade com fatos históricos ligados intrinsecamente à rede ferroviária e ao prédio da estação.
Direção: Frederico Nepomuceno
Dramaturgia: Louise Roux
Criação coletiva
Elenco: Cida Gomes, Luiz Gustavo, Rael Mendes, Patrick Escobar, Loren Assumpção, Swaggart Nganga, Rafik Fetmouche, Morgane Pommier, Pascaline Robinot, Louise Roux, Loubna Quaffou, Josemar Alves, Thiago Almeida, Marta Cristina, Hallan Alves, Celso Luis e Rodrigo Ferreira.
Quais as outras atividades estão previstas para o local em 2018?
O imbróglio político concernindo o abandono do prédio da estação não ajuda na continuidade do projeto. Os participantes, habitantes de Barra do Piraí, tentam continuar com as atividades no local, pautados na programação cultural já implantada. A Secretaria de Cultura já anunciou o fechamento do prédio após a partida dos artistas da cidade.
> Contatos profissionais de Frederico Nepomuceno - fredericonepomuceno@gmail.com
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