(Fotos: Divulgação)
“Caminhos - Uma intervenção urbana”, com a Cia. EnvieZada
Tem dias que pensamos que vamos ter um dia comum. Como certo dia que sonhamos em viver em um palco e fazer disso um sonho de vida. Tem dias que pensamos que os dias comuns são como sonhos. Como sonhos que vêm e vão. Quem nunca um dia sonhou em ser importante. Famoso. Ser famoso por ser importante. Quem nunca um dia sonhou em ser o centro, estar no centro. Bem assim, no centro de tudo. No meio do palco. Desejei tanto isso na minha vida que acabei transformando o centro em palco. O centro da cidade, meu centro interno, entre o umbigo e o sexo. Aquele mesmo centro que focamos nos exercícios de cena para mantermos nosso eixo e dali extrair a presença cênica. A mesma presença que como cidadãos fazemos impor nossos direitos. O direito de ocupar.
A coisa é a seguinte. Quebrando a quarta parede e falando sem delongas ou poesias. Sonhei tanto em viver num palco que hoje passo de seis a dez horas por dia em cima de um. Um palco com quartelada, fosso, cortina imperial, varandas, como (quase) qualquer outro. Isso me rende histórias. São muitas histórias por dia. Hoje, por exemplo, se começo a contar uma história me confundo em metas-histórias, ao mesmo tempo em que vejo histórias, as vivencio de dentro, como protagonista observador e/ou como um observador protagonista.
Novamente, vejamos. Pela manhã logo cedo fazemos nosso despertar matinal normal, como de qualquer cidadão. Tomamos café tradicional, com pão com manteiga torrado, café preto e chocolate. Por uma volta na rua compra-se os essenciais da casa que estão em falta, no mercado, nas Lojas Americanas, aluga-se um filme blockbuster, e volta para preparar o almoço. Uma história. A minha história. Mas o dia continua. Visto meu personagem diário, o peão, e vou trabalhar. Nessas histórias existe uma certa história que envolve uma boneca e um bonequeiro. Um certo garoto que se apaixona pela boneca e sonha em se casar. Intervalo.
Hoje é dia de intervenção na rua. Saio pela porta principal, atravesso a rua que está em frente à entrada do prédio. Passo pela frente do teatro municipal. Sigo em frente. Passo por construções supermodernas, viro à direita. A calçada ficou mais estreita. Na esquina da rua feia, onde começa a ficar mais estreitinha tem um outro teatro acontecendo. Uma nova história. Um novo caminho. Dias comuns. Encontros, re-encontros, desencontros, poesias. Pensar nesses caminhos como chegadas e despedidas. Pego meu fone e sigo meu intuito de percorrer um caminho, ouvir a mesma história, mas hoje de um outro ponto de vista. Tudo de um outro ponto de vista. Então, eu decido perceber cada pessoa que cruza. Assim, desta forma, as coisas parecem que vão ganhando uma outra importância. Penso no meio desse caminho na discussão sobre a relação que tive ontem à noite. A realidade. Mas e se eu tivesse podido, ontem , ter colocado uma outra trilha sonora? Viagem.
Daí, então, me vejo andando na rua. Sem diminuir o passo acelerado, penso igual àquela velha senhora, comum: vamos fuzilar a burguesia. Vamos? Daí, então, os noticiários, a violência, agressões. Volto à realidade. Trabalho de conclusão de curso, valor, trabalho, ocupação. Criatividade. Vai uma alternância de papéis, de vítima e agressor, uma alternância entre opressor e oprimido. Dentro daquele palacete nos sentimos um lixo. Uma banalização das relações, uma forma de resolver o conflito de forma... Respirando. Eu deveria ter pensado: Eu não vou mais trabalhar hoje. Chega!
“Uma intervenção urbana” está em cartaz no Rio de Janeiro
Compus então um tema e montei uma partitura que a partir de agora fará parte da minha vida. Componho cada detalhe em busca de uma beleza. Resilência. São histórias que poderiam acontecer a qualquer um. Caminhos que passarão para cada um de uma forma a cada dia. Como aquela água com carvão e sal grosso que fica curando por sete luas que jogamos no rio para expurgar, extirpar, cortar. Fluir. Abrir caminhos. Abrir novos sonhos. Aplausos. Intervalo de vida. Volto à realidade. Ao meu tradicional açaí. Caprichado no guaraná, com granola. Cinco e trinta. Crédito ou Débito. Crédito. Senha por favor. Obrigado. Até logo.
Caminho pela calçada. Cruzo a rua estreita. Entro pelo boulevard. Vou até a entrada lateral, a do restaurante, subo pela escada, entro no palco pela porta de acesso do corredor da plateia. Então começa tudo de novo. A história da boneca que no segundo ato toma vida por meio de um feitiço. Aquele menino insistiu e pediu sua mão em casamento para seu feitor, ou melhor, pai. A filha recebeu o mesmo nome que o pai. No feminino, claro. Mas espera. O espetáculo ainda não começou. Vai começar o ensaio. Mas...
Vamos interromper a partitura por um momento. Tudo dentro de um grande teatro de óperas é seguido pela partitura do maestro, o outro que fica na cabine, não o da orquestra, que segue dando todas as orientações para os técnicos pelo rádio. Mas então para a partitura. O que é aquilo no monitor? Ali no cantinho da tela. Você conhece? Deve ser parente de alguém. Estão tirando fotos? Vou lá ver o que é! Tudo, visto de um outro ponto de vista gera encontros, desencontros. O figurino não condizia com o cenário. Chapéu panamá. Blusa florida. Bermuda. Bolsas de praia e havaianas. Uma menininha, loirinha, olhos azuis, tirava fotos no Iphone lá do outro lado do fosso, que estava abaixado para a orquestra. Ela na frente da primeira fileira, fixa os pais em fotos com poses naturais. Artísticas. Espontâneas. Dois poloneses, ou melhor, três, contando a filha, entraram pela porta principal do teatro que ficou aberta e, por uma falha da segurança, eles conseguiram. Ninguém mandou parar.
Nenhum dia parece ser normal. Tem dia que pensamos que vamos ter um dia comum. Como um certo dia que sonhamos em passar durante algum momento da vida por um palco. E passamos. Eu precisei fazer o meu trabalho, informá-los de que ali não podia ficar. Mas se eles chegaram até ali. E me encontraram trabalhando. Encontramos então. Perguntei o caminho que fizeram, como conseguiram entrar, por que entraram. Se fosse qualquer um outro teria os colado dali com os dois pés nas bundas, expulsando-os. Imagina só se lá do céu veem um troço desses! Falha terrível.
Agora estamos no esquema do grande irmão, aquele olho que tudo vê. Wi fi. Eu ouvi suas histórias atentamente. Ao final, os convidei para conhecer a história da boneca que vira gente e casa com aquele garoto apaixonado, nesta noite. Deixei meu telefone. Mas sabe aquela sensação de ser um dos únicos a querer convidar alguém para aquela peça? De fato existem coisas mais interessantes para se fazer nesta cidade. Vida que segue. De repente, faltando alguns minutos para o primeiro sinal, tudo muda. Volta o ritmo acelerado, de festa rave. Informações que se cruzam, mudanças de última hora, atrasos, diretoria fiscalizando, anotando. O grande olho vendo tudo, músico que não chega, cenário que engastalha, material que some, celular que quebra, rádio que não funciona. O telefone toca. No meu parco inglês percebo que nesta terça descobri meus novos amigos de infância desta semana, como diz o Bravo.
“Coppélia” pode ser vista no Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Meus convidados de repente estão naquela partilha para dividir comigo, mesmo que em lados opostos, com diferentes pontos de vista, um caminho já percorrido, mas com um filtro novo. Saber o que é andar pelos meus caminhos. Acreditando nos meus sonhos. Ou aquele sonho que tive de viver num palco e agora, pelo caminho do palco, por engano ou abertura, eles estavam vivenciando uma história presente há tanto tempo naquele mesmo palco. Mas da plateia.
Geralmente histórias de bonecas, com príncipes, brinquedos e sonhos são muito grandes. Extensos toda vida. Essa não era diferente. Cotidianamente tudo demora. Até mesmo o encontro que antes do espetáculo marcamos para depois do espetáculo estava demorando três grandes atos. No intervalo do segundo para o primeiro ato ainda pensei: Será que ainda estão esperando? Pois se esperassem teríamos um reencontro. Poderíamos contar mais histórias como as que vivemos e sonhamos. Como as que vimos e protagonizamos. Mas não. Desencontro.
Meus novos amigos diluíram-se, desmancharam-se. No final, não restou nada mais do que o charme. O grande charme de pertencer a tantos caminhos. Poder num único dia cruzar tantas histórias, se confundir, me confundir entrecruzando, perpassando, entrelaçando histórias. E tudo não passou, na madrugada, como se estivesse contando um sonho. Um conto. E da flor da pele, do pó do osso, do coxis até o pescoço, ascendo um bigo. Uma ducha que corre pelas veias já na ramagem. A voz da melodia, na raiz do cabelos, o ar gela a sola dos pés, os músculos ficam moles, no estômago um vão. E os olhos de sono, ardem como o sol do fim do dia. Fecho. Esqueço os caminhos que me levam sempre aos mesmos lugares. Tempo. A travessia. Nós somos a matéria da qual são feitos os sonhos e nossa curta vida está envolta pelo sono.