Publicada: 12/12/2016 (20:36:39) . Atualizada: 17/12/2016 (11:10:57)
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Por que gosto de chocolate? Por que gosto de perfume? Por que gosto de olhar para as nuvens? Agostinho de Hipona comentou que existem as coisas úteis e as para a fruição. Disse: “Por meio dos bens corporais e temporais, devemos procurar conseguir as realidades espirituais. Disso decorre que devemos gozar unicamente das coisas que são bens imutáveis e eternos. Das outras coisas devemos usar para poder conseguir o gozo daquelas”. Gostamos de coisas para a fruição porque nos dão prazer, e porque é “bom”. São coisas que nos levam ao “fruir”, que fazem com que nos utilizemos delas para conseguir realidades espirituais, como no caso da música.
Existe o ócio e o “Nec ocium”. Gostamos do ócio porque ele se baseia primariamente no pensamento, que é a base para uma vida analisada. Baseamo-nos em que prazer é bom, e o desprazer não. Essa questão moral é difusa. Alguns prazeres podem se tornar desagradáveis. Alguns desprazeres, por sua vez, podem ser agradáveis.
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A música pode causar prazer e desprazer, conforto e desconforto. O desconforto auditivo com referencia à intensidade, ou volume do som, pode causar dor, porém, prazer em alguns casos. A um nível sonoro elevado alguns hormônios do prazer são liberados no corpo. É por isso que alguns concertos de rock são tão prazerosos para algumas pessoas.
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Sons musicais estão presentes na natureza. Através da imitação o homem construiu seu legado musical. Hoje liberto da cópia, melhor dizendo na linguagem estética: “mimese”; cria sua música a partir dos desejos internos e de seu racionalismo idealista descompromissado com a realidade natural. Hoje estamos aptos a ouvir uma música extremamente elaborada e que cinge nossos ouvidos de forma quase espúria, futurista e “ideal”. Por ideal entenda-se o que está na criatividade e não na mimese. A vanguarda eletrônica do século XX principiou essa aspiração humana.
Gostamos de música porque quase todo som ouvido poderia ser considerado música. Música é tudo que “aguça”. Música é tudo que aturdi e faz sair da zona de conforto. Quando ouço alguém cantarolar “parabéns pra você”, posso sentir vontade de comer bolo. Quando ouço o som do berrante, me lembro dos campos e fazendas de antepassados e parentes.
Sons que perfazem a música nos “remetem” a lugares imagens e a lembranças associadas a prazeres. A obra de Villa-Lobos: o “Trenzinho Caipira” cria uma imagem do mesmo. Não há quem não se comova com tal obra.
Aliás, Villa-Lobos quando jovem tocava violoncelo profissionalmente nos cinemas quando ainda não existia o áudio. Sua intenção como músico era o de criar imagens sonoras que combinassem com o filme que estava sendo projetado. Essa atividade foi aprimorada por ele, e em quase toda sua obra podemos perceber imagens através de sua música. Por outro lado, existem músicas, onde o artista se propõe a não evidenciarmos nenhuma imagem na composição musical.
Música será sempre música e a livre associação de imagens ficará sempre por conta de quem ouve. A música será sempre metafísica. Sons serão sempre sons, e se nos remetemos às imagens é porque assim o queremos. Limpar nossas mentes das imagens será uma empreitada difícil, todavia, não impossível. O próprio jazz fusion nos libertaria das formas do mundo.
Ele descansará nossas visões. De olhos fechados poderemos nos transportar a um mundo fora desse mundo - o mundo metafísico verdadeiro. Não foi por acaso que as religiões se apropriaram tanto da música.
Isso se deu porque ela nos reporta a um mundo que não está aqui, porém em nossa idealidade metafísica.
Gosto de música porque ela é metafísica e nos reporta a mundos não reais. A utilização de meios materiais para se chegar ao produto sonoro, no caso do uso de instrumentos, nos levam a outro campo e a uma “ordem” de fruição; como dizia Agostinho de Hipona. Na verdade me “utilizo” dos meios materiais para chegar ao campo do prazer, que está no “fruir”, que está no eterno e imutável. Não consigo usar a música, quando ouço, para prosperar financeiramente, todavia, o ganho espiritual no campo metafísico é incalculável.
Ouvir um material sonoro imaterial é elevar-se a mundos que viagens intercontinentais soariam desprezíveis. Ouvir é viajar para dentro do “eu” e aperfeiçoar a ideia de que o mundo material só existe para ser utilizado em prol de algum ganho ulterior. Ouvir não produz alimento, nem carros, nem apartamentos, porém, constrói no homem um reino que lhe é próprio e saudável para sua felicidade. Constrói uma nação inteira de riquezas indestrutíveis. Constrói um universo em que só você habita e só você aprecia e entende, porque esse é o seu “eu”. Só assim o homem vai conhecer a si, através do que lhe toca a alma e não da utilização dos bens materiais. Vai conhecer também através do seu gosto inato.
Por isso, a música é um dos maiores bens, porque não é palpável como a escultura ou pintura, ou arquitetura, ou gastronomia, todavia, é transparente, abstrata e imaterial. Isso a faz eloquente, tagarela, temporal, causando no ser humano a consciência de que os mundos a serem conhecidos não clamam por viagens por labirintos geográficos, mas por labirintos internos onde se perde a noção, felizmente, do valor da prosperidade econômica e financeira.