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Caro leitores, este é um artigo de extrema importância para a compreensão exata dos temas abordados nas próximas colunas. Espero que gostem!
O homem ao caçar procurou imitar e até hoje imita os pássaros da natureza. Imitava-os com perfeição e também os animais da floresta para se misturar ao seu mundo e atraí-los para poder se aproximar.
Poderia, no passado se quisesse, enfim, disparar sua flecha ou sua lança para alimentar sua tribo. Essa técnica de imitação forneceu ao homem uma habilidade de assoviar e também usar seu aparelho fonador de maneira inusitada, criativa, camuflada e enganadora. Sua voz daria lugar ao canto. A modulação de suas cordas vocais foi além de sua natureza. Não conseguimos imaginar o leão imitando o som emitido por uma zebra, para enganá-la e poder se aproximar, contudo, até uma criança consegue imitar o rugido de um felino.
A voz humana para o canto é também um aperfeiçoamento das técnicas de caça e aproximação sua para com os animais. Guias turísticos imitam hoje os animais para que os turistas possam observá-los. A voz com sua modulação trouxe benefício estético à sua vida. O canto passou a não mais fazer parte da arte da caça, todavia, foi usado nas festividades tribais como entretenimento e louvor a seus deuses e crenças. O luto com o choro fúnebre, também, faz parte do rol de motivos nos quais o homem passou a cantar e balbuciar palavras na música. Hoje o homem não vive sem “cantarolar”. Canta no banheiro, canta quando tem momentos de felicidade e canta também para enaltecer sua vaidade. O artista-cantor aprimora sua técnica para o reconhecimento de sua carreira. É bem provável que a percussão tenha vindo primeiro - nos cultos religiosos e festas tribais. O canto provavelmente tenha vindo em segundo lugar, como clamor e expressão natural humana.
Algumas palavras de exaltação podem ter sido as primeiras “letras” de música, talvez faladas ou mesmo proferidas dentro de uma melodia, invocando a primeira sonoridade na música, como “vocativos” e espanto aos mistérios divinos, e escabrosos ímpetos de temor frente aos espíritos, que povos primitivos, achavam presentes em seu meio, manifestados, via de regra em quase todos os clãs da pré-história e civilizações da antiguidade. A religiosidade precedeu à cultura, pois essa é a consequência daquela. Até hoje podemos sentir o frenesi e as manifestações místicas provocadas pela falta de entendimento do processo metafísico do mundo espiritual. As canções de exaltação e louvores aos credos, proferidos a Deus, e em outras culturas, a deuses, fizeram da história das canções cantadas um testemunho de que o homem usou da literatura como emulsão na música para que essa pudesse “empurrar” seus íntimos anseios, superstições e reais conflitos extra-mundo.
Algumas técnicas de vocalização, todavia, prescindem de palavras. A “bocca chiusa” não usa uma letra musical, porém, sons naturais de expressão. Quando a poética foi inserida na música, teve a intenção de apresentar um “discurso” literário ou ideológico. A essa inclusão de um novo discurso semiótico, as palavras associadas à música causaram uma intervenção na arte musical pura. Defrontamos-nos a partir daí com uma bifurcação que deu origem a dois mundos distintos em uma mesma “mensagem”. Na “teoria da informação”, poderíamos considerar a letra ou a palavra inserida dentro da melodia como um “ruído”, pois esse traria uma dispersão no foco principal que é o som e não a poética. A emissão de palavras através do canto usou da beleza da música para que o discurso poético fosse suavizado. Essa “carona” que o “logos” (a palavra) pegou com a música foi o que ajudou a poética a se difundir nos meios religiosos e até políticos. A prosa e a literatura tornaram-se mais populares e através da “repetição” sistemática puderam penetrar seus conceitos e ideias pela “redundância”. Esse artifício de repetição ou esse bombardeamento da “música falada” ou, como se costuma dizer: “cantada” é muito usado pelas mídias de forma abundante e geral. Através dessa técnica informacional das mídias, convenceu o homem das ideias expostas nas letras das canções ou hinos.
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Costuma-se não gostar de uma música com letra na primeira vez, porém, exaustivamente, a canção ganha terreno, e o homem finalmente cede seu território e critério estético à repetição.
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Fomos acostumados desde os primórdios da civilização humana a cantar nossa “tradição cultural” sem passar pelo julgamento do gosto individual, mas cantamos porque todos cantam. O belo não está disponível ao nosso julgamento, contudo, a cultura e a tradição falam mais alto. A moda, que é o costume, sempre impôs em nós o legado do que ouvir. Nossas cirandas, canções infantis nunca deram a chance de um julgamento estético sobre o “Belo”, mas nos ensinaram que aquela era a cultura na qual fazíamos parte. Canções tão pueris evocam em nós uma boa nostalgia, principalmente nos adultos, nas crianças sua formação cultural e demonstração da força indestrutível do folclore e nacionalidade.
Essa é a força irresistível da música cantada usando a literatura a reboque; uma expressão que ganhou força tomando o lugar da música pura. As ideologias e apelos políticos sempre se aproveitarão de oportunidades como a de usar a pureza da música e dominá-la. Sempre que uma expressão artística é bela, outras formas de arte se atrelam para se beneficiar do contexto primário. Tratar de um assunto tão delicado como esse é julgar certas submissões que têm o poder de anular causas nobres. Entretanto, fazer-se levar por uma obviedade da cultura é entender que não adianta resistir, fazendo-se refém das ideologias. A poética estará sempre cavalgando na música, e com rédeas firmes não largará tão fácil a diligência que perpassa a história do homem deixando um rastro de extrema beleza e cópula entre dois mundos artísticos distintos. O filho híbrido que é gerado por esse coito inaudito faz-se príncipe, por enquanto, eterno da vontade ideológica, que aspira poder e pede reverência para ditar as verdades de uma filosofia e política dominadora, que tanto deseja os poderosos.