Publicada: 02/02/2017 (08:54:07) . Atualizada: 22/02/2017 (22:12:14)
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É comum alguém dizer que: “Gosto muito daquela música”. Porém, o que esse alguém gostaria de ter dito, não são todos, era que a “letra” daquela canção cantada seria, talvez, o “verdadeiro motivo” de sua preferência com respeito à apreciação estética. Quando alguém gosta de alguma música internacional que contém uma letra num idioma que ele não entende podemos afirmar realmente que ele aprecia sim aquela música, porque as palavras ditas soam apenas musicalmente e não passam nenhuma mensagem cognitiva.
A música vale como manifestação musical pura e não como fenômeno de poli arte. Música é música! Letra confeccionada para estar atrelada à música está no âmbito da literatura; para ser mais exato, no campo linguístico. Aristóteles dedicou a essa espécie, um trabalho que denominou “Poética”. Comenta inclusive sobre o trabalho do coro no teatro grego. Já em sua época a música misturada com a poesia já estava de longe sendo usada na dramaturgia. As peças de teatro grego necessitavam do “coro”, que fazia a parte “explicativa” na peça. Algumas delas, todavia, de difícil entendimento para o público comum, obtinham um entendimento global porque o coro as explicava cantando, entretanto, algumas vezes recitava a explicação. Essa já era a função que um orador deveria fazer, todavia, o “coro, que era também cantado”, fazia esse papel no teatro grego. Podemos perceber historicamente, que esta mistura entre música e poética já vem de longa data.
O que deveríamos observar, contudo, é o aproveitamento desse casamento para fins não estéticos, todavia para fins ideológicos e propaganda. “Uma mensagem será bem mais percebida quando for cantada”. A verdade pode ser observada através dos manuais e textos sobre informação de massa. Podemos citar autores como Umberto Eco, em “Apocalípticos e integrados”. Jingles são os preferidos, embora os hinos de grupos e canções da teledramaturgia alcancem índices que uma poesia com pouca divulgação possivelmente não teria. Poemas de grandes autores que o público reconhece são em pequeno número. Deve-se esclarecer que também o público em geral não lembra de todo o poema, porém, alguns pedaços isolados. Quando, inclusive, sabem de cor, alguns não conseguem sorver a beleza poética, porque, às vezes, declamam com rapidez para não perderem o texto memorizado e não conseguem pensar nem sentir a beleza da obra.
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Com a “letra” de uma música acontece uma espécie de mágica. A obra musical, no caso a melodia com a harmonia, carregam a letra, que contém a poética nos braços, e num ritmo consegue penetrar na alma dos ouvintes.
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Entretanto, não podemos nos esquecer da “redundância”, ou massificação das canções, que fazem imprimir no córtex cerebral a memória que nunca se perderá facilmente, porém, o tempo e o desuso sim. Cursos de idiomas usam em larga escala esse artifício de memória para o vocabulário estrangeiro, geralmente trabalham uma música com letra para que o aluno através da repetição e o deleite musical armazenem as novas palavras. Professores de cursinho pré-vestibular, também aproveitam essa técnica, consequentemente, através dessa “carona”, conseguem que seus discípulos memorizem extensas informações, como por exemplo, a tabela periódica, fórmulas de física e um vasto número de conceitos em biologia etc.
Não é difícil perceber que a poética desejou, através da eficiência e perspicácia humana se atrelar a essa forma de arte pura que é a música. Não podemos afirmar se esse “casamento” foi uma reivindicação da poética, ou a própria música sozinha que necessitou de companhia. Alguns músicos instrumentais têm baixa tolerância ao ouvir música que contém uma “letra” atrelada a esta. Diga-se “musico instrumental” é aquele que só trabalha com sons. Os ingredientes que usa para seu trabalho são apenas a melodia, a harmonia e o ritmo.
No outro lado está a outra “turma” que não abre mão da mistura da música pura com a poética.
Se analisarmos a história da música verificaremos que quase todos os grandes compositores usaram a poética como ingrediente final para suas obras. Porém a qualidade dessa mistura foi determinada pelas parcerias entre músicos e poetas. A Bachiana número 5 de Villa-Lobos, dança (martelo), contém uma letra de Manuel Bandeira.
Algumas canções Elisabetanas, do período renascentista possuem letra de grandes poetas ingleses da época. Nossa música brasileira viu grandes “letristas” associados a grandes músicos. Independentemente, alguns poetas como Chico Buarque, são grandes músicos.
A raridade nesse casamento é a pedra de toque na música cantada. Às vezes a letra é boa, e tem boa aceitação popular, contudo, às vezes, a música é repetitiva e não contém elementos agradáveis aos ouvidos, tornando-se um pouco enfadonha. Obras primas neste setor só serão avaliadas com o tempo, pois vêm sempre apresentada com outras obras. Só o tempo poderá separá-la e considerá-la valiosa.
Um olhar “crítico” a esse tema, por certo, trará à luz, alguns “flashes” sobre esse “amálgama”; junção de dois elementos não “misturáveis”, como água e óleo. Todavia, a cultura, vista no âmbito musical, aceita e leva em seu copo essas duas misturas, talvez, usando um “emulsificante”, para que esses dois elementos se juntem para o deleite social. O emulsificante tem o papel na química para juntar elementos distintos que não se misturam; a lecitina, encontrada na gema dos ovos é um deles. De alguma forma a cultura encontrou para “juntar” ou emulsificar esses dois elementos, a música pura e a poética; talvez tenha encontrado uma espécie de lecitina para uso na música. Terrivelmente acorrentados esses dois foram sentenciados a viver juntos já há muitos milênios, porém, as exceções também existem na cultura, e há aqueles que não toleram misturas nem com emulsificantes. Existe gosto diversificado para todos, felizmente. As escolhas com um vasto cardápio são variadas e colorem o cenário cultural com as mais variadas opções. Quer ouvir só música? Aí estão à sua disposição, por exemplo, as sinfonias.
Quer ouvir música cantada com letra? Aí estão os “Airs de Cour franceses”.
Ou a Música Popular, ou as cirandas. Quer ouvir poesia pura? Aí estarão te esperando para te comover, Drummond.
Manoel Bandeira, para te encher de lágrimas ou sorrir sem que seja preciso invocar a metafísica de outro mundo; o musical. Alguns preferem lê-los ouvindo Bach, alguns ouvindo Villa-Lobos, ou outra qualidade musical, porém, alguns preferem o silêncio que a poesia merece ao ouvi-la melhor e que nada interfira no próprio som das palavras que ontologicamente possuem sua musicalidade própria.