(Foto Ilustrativa)
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Parece que o apreciador (fruidor), erudito, aos olhos de quem se gaba de ser um deles, diz que não pertence ao mundo da música menos elaborada; por outro lado, o que se gaba de ser popular comenta que a música erudita é confusa, impopular, estranha, canhestra e não palatável
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Qual foi a primeira música composta pelo ser humano? Teria sido uma música superelaborada, ou um simples canto, com um acompanhamento simbólico de um tambor? Talvez tenha sido uma lágrima acompanhada de choro e uma voz trêmula velando um guerreiro falecido. O desenvolvimento de quase todas as áreas da arte leva a uma erudição sem volta e inevitável. Chamariam a isto: Evolução da arte ou da música. Embora isso seja uma meia verdade, os ciclos artísticos e fases “primitivas” da arte atestam que a “involução” artística foi uma “opção”. Evolução ou involução acontecem o tempo todo nas expressões artísticas humanas. Chamar uma música de evoluída pode se tratar de um elogio, no entanto, a involução para os adeptos da concepção de evolução pode não ser entendida quando falamos da riqueza da música “primitiva”. Os ritmos das culturas orientais andam encantando o Ocidente. Nossa excelente música baiana faz balançar o corpo do mais deprimido ser e enche sua vida de alegria. A percussão excessiva na música pop vem calar e dicotomizar os sentimentos entre o erudito e o popular. Os ritmos frenéticos, ousados das percussões nos remetem aos nossos mais profundos instintos, criando um prazer ontológico e arquetípico no homem.
A separação entre a música erudita e popular se acentuou bem mais profundamente no século XIX. Em outros períodos, como na Idade Média, existia a música sacra, que na sua expressão mais aparente se servia do canto gregoriano nos cultos religiosos. Uma das primeiras notações musicais surgiu nesse estágio; é por esse motivo que não temos os registros, por exemplo, da música grega antiga. A música sempre acompanhou o homem sem os dispositivos eletrônicos de hoje, as gerações passadas só podiam ouvir quando alguém tocava e cantava ao vivo (a riqueza e diversidade de pessoas que tocavam era imensa). Apenas as cortes tinham músicas para o deleite dos nobres, porém, estes também tocavam de maneira esplêndida. Henrique VIII, Descartes, Nietzsche e muitos outros foram excelentes músicos. Se alguém no cotidiano da vida quisesse ouvir música teria que tocá-la!
Esse fato foi o suficiente para que as pessoas pudessem desenvolver um gosto musical mais profundo. Sabemos que os músicos em geral possuem um seleto e refinado gosto. Gostam inclusive, às vezes, do que não tocam em sua profissão. Renato Russo declarou que adorava ouvir música renascentista e da Idade Média. Se em tempos passados quase todos tocavam, o gosto e o refinamento eram elevados, por isso a diferença entre música popular e erudita não era tão visível. Existia na renascença um repertório para alaúde e voz de (canções para beber), as “chansons à boire”, as de infidelidade, e outras tantas formas, que ficavam a meio caminho entre o popular e o erudito.
Todavia, músicas encomendadas pela corte para casamentos e festejos tinham um tom mais solene. Canções para alaúde e voz foram compostas inclusive para luto de reis, como aconteceu na Inglaterra, no período do reinado de Elizabeth I.
A música sacra, a composta para as missas, sempre possuíram um tom mais fechado, recluso, talvez um erudito-religioso (sacro), pois serviam a interesses mais sérios da vida no seu fim, como os Réquiens, missa para o funeral do homenageado. O próprio Mozart compôs uma missa dessas para ser tocada quando de sua morte.
A separação de uma maneira geral, nos séculos anteriores, não se dava pela fórmula como “alguns” de preconceito musical veem hoje, como: Popular, menos elaborada, ou inferior, e a erudita, mais elaborada e superior. Nos períodos anteriores ao nosso, as diferenças eram muito tênues e se davam pelo tipo de comemoração ou para a finalidade para as quais elas serviam. Uma música tocada em uma taverna, onde se bebia cerveja, não possuía o teor nobre de uma coroação. Contudo, hoje, ouvimos letras acompanhadas de música que falam de morte sem o devido respeito e circunspecção pelo fim da existência de um ser humano. Ouvimos um lamento amoroso, que faz alusão a um adultério como se deliciasse numa empreita de fazer sofrer o ser amado, gabando-se da traição, de modo inveterado, potente e esnobe.
A música erudita se separou, por motivos culturais e naturais. Já os interesses de ambos não prevaleciam iguais, e o esmero em compor, com o advento da escrita musical, propiciou uma composição harmônica quase que matemática, respeitando regras e cânones. Nos cursos de composição de música existem critérios de estilo e observações que levam o estudioso e compositor a criar sob contextos previamente aprendidos. Já a música popular se deixou levar pela intuição, naturalidade e sem regras, avançar o quanto pode sem uma “ciência da música”, qual possuía a música erudita.
A separação pode ser visível para quem quer ver. Uma boa dica seria o de não olhar preconceituosamente para a dicotomia, popular e erudito, contudo, com um olhar monista onde toda a manifestação musical concorre para o bem. Esses conceitos foram criados naturalmente por um preconceito aleatório sem causas aparentes. Parece que o apreciador (fruidor), erudito, aos olhos de quem se gaba de ser um deles, diz que não pertence ao mundo da música menos elaborada. Por outro lado, o que se gaba de ser popular comenta que a música erudita é confusa, impopular, estranha, canhestra e não palatável. A divisão ou categorização existe infelizmente, porém, quanto menos preconceito tivermos, e pudermos diluir esse muro que envergonha a estética sem preconceitos, estaremos mais perto de juntar, amalgamando na mesma música, o instinto e a inspiração natural com a potência e a articulação elaborada. Essa dicotomia se dissolverá, e nosso homem primitivo, o homem do instinto nietzschiano que habita em nosso arquétipo poderá criar novamente canções que falam da vida e não de seus critérios estéticos.