(Foto Ilustrativa)
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O simplório pode não ter nada a ver com o simples, porém tem a ver com uma complexa arquitetura das mídias desenhadas para proliferar e invadir os lares e a sociedade de consumo
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Alguns avanços foram conseguidos através do pensamento filosófico estético para desvendar, compreender e talvez negligenciar teorias conspiratórias que negam o popular e o simples. Um deles foi sem dúvida foi o livro: “Obra aberta”, de Umberto Eco, a quebra de um paradigma e de um preconceito criado pelos estetas que defendem a ontologia do belo. Esse escrito democratizou a arte e fez da cultura uma bandeira única para os que pensam que existe uma ideia, uma dicotomia e um conceito entre de erudito e popular. Uma obra musical, por exemplo, possui “informação” como seu próprio “veículo” de exposição. Quanto mais informação essa música possui, mais “abertura” terá. Essa teoria de Eco não se configura, conceituando a arte como primitivamente e tradicionalmente erudita ou popular, ou bela, ou não bela, porém, se ela explica e se possui muita ou pouca informação; e será: “apenas mais aberta”, e não mais bela, mais complexa, mais erudita, melhor, culta etc. A simplicidade é apenas um quesito de menos quantidade de informação, e não, contudo, de falta de beleza, primitivismo, desleixo na composição, preguiça no projeto artístico etc. A simplicidade, acreditem, é o caráter que uma obra tem em superar uma descrição exaustiva e alfabética. A poesia é um dos maiores exemplos de simplificação de textos, contos, filosofias e qualquer descrição mais alongada; explicativa. Com quatro versos conseguimos “expor” o que talvez em cem páginas de prosa não conseguíssemos. A poesia talvez esteja num maior grau que um aforismo, aliás, Nietzsche poetizava no meio de seus aforismos. A poesia é mágica e travessa nesse quesito, consegue ludibriar os ouvidos acostumados à muita conversa e explicações. Com a música esse fenômeno é exponencializado. Uma melodia com notas longas como as Gymnopédies de Erik Satie podem agradar e produzir mais catarse e satisfação que muitas melodias virtuosas.
O uso da poética em conjunto com a música, conhecida como “letra de música”, usa dessa plataforma estética, muito usada pela informação de massa, para criar jargões e frases simples e populares que “impregnam” as mentes de quem as ouve e as degusta. O “simples” acomoda e cerca de maneira muito mais rápida que o erudito. A compreensão de poéticas ousadas por alguns letristas só terá alcance de maneira retardada e futura. A compreensão imediata através de formas puras oferecidas pela “Gestalt” são as mais recomendadas. A Gestalt, só para lembrar, é o estudo da teoria das formas, criada na Alemanha no século XX. O simples sempre estará na frente do entendimento “instantâneo” em detrimento da forma erudita. De qualquer forma, sendo a música de maneira geral atrelada às letras, pode se apresentar de maneira “solo”, numa compreensão isolada. Pode-se criar uma letra muito simples, de poética popular e doméstica, contudo, estar amarrada à uma composição musical jazzística, de pouco entendimento. Isso, aos olhos da rapidez que as mídias preconizam, não terá grande efeito, inversamente será melhor uma melodia e harmonias mais comuns com sabor de preferência ao “déjà vu”. Esse efeito lembrará até sonhos ou visões que se repetem, criando uma atmosfera e zonas de conforto para quem ouve, evitando grandes esforços de entendimento aos quais a música erudita preconiza, porque, na maioria das vezes, tem essa intenção; que é a de propor uma digestão lenta ao que se ouve.
Formas complexas na música que servem como parceiras das letras podem “atrapalhar” o entendimento ou a aproximação do grande público. É costumeiro o fato de ouvirmos composições com melodias fáceis e letras açucaradas. Essas fazem muito sucesso, e é bom lembrar que o que é fácil de deglutir é fácil de digerir, fácil de entender e fácil de memorizar. A memorização inclusive é quesito fundamental para que a canção se fixe, para impregnar e marcar o córtex humano. Músicas do passado estão constantemente “assombrando” nossas lembranças. É costumeiro cantarolarmos canções que estavam escondidas em nossa memória e lembramo-nos de toda a letra e melodia da canção. Esse efeito é o almejado alvo dos grandes sucessos da mídia. Aí estão inclusas letra simples com conteúdo emotivo ou, talvez, até político, acompanhada de música simples com harmonia e melodias fáceis de repetir.
Enfim, o simplório pode não ter nada a ver com o simples, porém tem a ver com uma complexa arquitetura das mídias desenhadas para proliferar e invadir os lares e a sociedade de consumo. Difícil é escrever “simples”, pois a simplicidade às vezes é mais complicada de dizer. John Wesley, pastor protestante de formação erudita, se contorcia ao ter que usar uma linguagem mais simples para os fiéis de origem simples que o ouviam (até Agostinho de Hipona, o pai da patrística se utilizava de “gírias” de sua época para se fazer entender melhor). Um discurso ou um pronunciamento em horário nobre na televisão é revisado inúmeras vezes para que o entendimento abranja o maior número possível de telespectadores. A música e sua letra, se for uma canção, sofrerá correções pelos produtores se essa almejar o alcance do “sucesso”. Um filtro poderoso é quase sempre usado para escolher a “música de trabalho” que corriqueiramente se alude à música que se pretende como a que vai “estourar”.
O simples não é tão simples assim, pois envolve uma gama de vetores aos quais a mídia se apoia e estuda. Não se pode dar “ponto sem nó”, como dizem. A tacada tem que ser bem elaborada, e no mundo do entretenimento, tudo é levado muito a sério, porque envolve questões que estão fora da alçada desse artigo. Entretanto, podemos imaginar a profundidade desse jogo estético dirigido pela mídia. Querer banalizar ou escandalizar uma canção simples em detrimento de trabalhos mais elaborados e eruditos é não entender a complexidade da simplicidade. A “boa forma” da “Gestalt” foi estudada por grandes filósofos e estetas alemães. Nossa mídia nos oferece coisa bem mais complexa; através da simplicidade estão escondidas técnicas, artimanhas, e conceitos nas quais estão envolvidos grandes teóricos da comunicação de massa e da semiótica. O simples aqui se torna complexo, e o complexo estará “livre” para agradar quem o entenda através de estudos mais complexos, só que sem a ajuda do fácil.