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Guardião do Imediato

A música simples ouvida

Simples nunca deverá soar como ruim, porém, apenas como simples, como uma ostra regada com limão ou como um vestido preto de seda básico clássico

Música  –  22/05/2018 19:48

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Quem está acostumado com a música simples é guardião do imediato. Quem prefere a complexidade das frases musicais dos grandes compositores estará sempre por ouvir atento mil vezes, até que se conforte, entretanto, nunca se confortará, apenas sentirá paz de espírito. O destino da escolha pelo complexo musical é um “desafio pomposo”. A música, contudo, definitivamente, estará submetida à razão, e a vontade submetida ao estético crítico. Não é fácil entender uma sinfonia à primeira vista na sua primeira audição. O homem criativo eloquente provoca nos ouvintes um questionamento ímpar, diz: “desejo que me entenda”. O outro responde: “ainda não entendi, contudo, me esforçarei”. Nem Villa-Lobos entendeu perfeitamente seus próprios quartetos de corda.

A loucura da composição complexa clama pelo entendimento, mesmo que seja uma empreita difícil. A música de vanguarda exige muito mais com um conhecimento e acompanhamentos estéticos prévios.

Esse “apelo” provoca na sociedade que a ouve, ou que a rejeita, motivos para pensar e “evoluir”. Uma evolução inócua é preterida pela bandeira erudita, sempre à frente e avante, até que para entender uma composição se ouça “ad infinitum”.

Na música simples o imediatismo ganha força. Vocifera que o mundo é veloz e o prazer deveria ser mais imediato, é como o slow food e o fast food na culinária formando seus grupos e seus apreciadores. Na música, esses nichos de lenta apreciação e entendimento se antepõe à rápida apreciação e entendimento da música simples. Resta apenas escolher como na culinária. Na música acontece o mesmo, apenas os caminhos serão mais tortuosos e mais penosos no caso da música complexa, quando no final do entendimento de ambos, finalmente, o prazer catártico será igual - o da extinção da fome e do prazer estético. O complexo na música não é o melhor, apenas mais longo com outro tipo de fruto. Quem duvidaria que o que chamamos complexo hoje será considerado primitivo e simples amanhã? Essa escala de valores só pode ser avaliada hoje com seus elementos. As músicas dos menestréis medievais são cantadas em concertos de música antiga como uma iguaria do complexo.

Sabemos nós que essa música folclórica e popular pertencia no medievo à cultura popular e da estética do simples. Essas rotulações às vezes incomodam porque se contradizem ao longo da história. Hoje se ouve Pixinguinha em um tom mais solene, em salas de concerto, porém, quando em sua época, quem o apreciava estava associado a uma cultura do choro, sabidamente popular.

A história da música deixa em seu rastro, de acordo com o tempo de seu passado, um heroísmo e uma pujança de obras populares que se tornaram eruditas apenas porque foram compostas muitos anos atrás (é o caso das composições dos menestréis). A música erudita tocada em algumas salas de concerto, quando oferece seu cardápio, muitas vezes se esconde atrás da história da música para justificar que é uma iguaria complexa, quando na verdade é apenas um manto do “chique erudito” que tanto os intelectuais se orgulham de apreciar.

O simples aqui poderá ser o erudito ou o complexo do amanhã, dependerá de como a história será contada. O simples aqui se torna o complexo pela “mão” da história - elemento extrínseco a avaliações estéticas puras. Ouvir o simples hoje equivalerá, possivelmente, ouvir o complexo do amanhã.

Classificar o “popular”, o “pop” de “simples” poderia ser um erro se consideramos, por exemplo, que a feijoada não é um prato que leva a bandeira da culinária brasileira avante, levando em seu bojo uma erudição de sabores associados a fatores históricos. A feijoada, apesar de kitsch (no bom sentido de aumento do repertório estético) é um troféu erudito da culinária brasileira sendo repaginada em restaurantes de renome. “Brasileirinho”, a composição de Waldir Azevedo, foi tema musical de fundo em competições de ginástica olímpica fazendo páreo às composições de Tchaikovsky como fundo musical de apresentações de ginástica de solo. Talvez as nações estrangeiras pensem que essa é a nossa música erudita (“Brasileirinho”), da mesma forma que não possuímos uma imagem clara da música erudita complexa da Noruega.

Bela Bartok compôs sobre temas de seu folclore - aí o simples e popular se mesclam com o erudito amalgamando tendências.

Muitos temas de filmes com novos arranjos têm sido apresentados com uma versão mais complexa do simples popular em salas de concerto. Esse “embrião” que chamamos popular, numa escala do simples carrega uma “essência” concentrada do “cerne” da cultura de um povo. O simples deverá ser observado sempre com lentidão e livre de preconceito, pois quase sempre será no futuro base para grandes composições. O samba outrora marginalizado, ou o choro, faz parte das composições sinfônicas de Villa-Lobos.

O simples ou o popular são ingredientes preciosos para o complexo. Nunca deveríamos rejeitá-los, por serem fonte de extrema “essência”. Algumas obras literárias do século XIX foram inicialmente editadas em fascículos nos jornais da época e posteriormente juntados na forma livro. O meio das mídias também é decisivo no rótulo que se dá a erudito e popular, complexo e simples. A Monalisa de Leonardo Da Vinci foi carregada por ele em uma mala por anos a fio, hoje está em um museu como símbolo de erudição. Não é difícil entender que enquanto estava na mala não levava o grau de erudição, contudo, quando foi para o museu...

Os menestréis tocavam nas ruas, o teatro medieval também era apresentado a céu aberto. A feijoada era servida como refugo alimentar, o choro e o samba eram tocados nas rodas dos bares. Prestemos atenção e usemos filtros para coar o preconceito maligno que destrói a simplicidade. Simples nunca deverá soar como “ruim”, porém, apenas como simples, como uma ostra regada com limão ou como um vestido preto de seda básico clássico. As coroas de ouro raramente são usadas, são apenas símbolos. Lembremos que Dom João VI não largava suas roupas rasgadas do dia a dia, aliás, quase nunca mudava de roupa. O simples poderá num grande gesto ficar deitado à sombra de uma árvore olhando para o céu e filosofar sobre a existência e gênese humana. Algum erudito pomposo poderá, no entanto, preferir ler Sartre ou Heidegger. Aqui não se trata de escolha ou opção, contudo, de bom senso e ter olhos que veem a vida na sua forma mais primária. O estômago não vê sabores, os olhos só enxergam cores. Nossa razão é que com o idealismo cartesiano e kantiano nos direciona para uma estética seletiva e confusa criando em nós uma mentalidade exclusivista e separatista. Se eliminarmos o preconceito teremos uma grande chance de nos sentarmos à sombra de uma árvore e apenas observar a natureza sem clamar por uma posição de status intelectual. Dizer: eu sou “este” e o outro é “aquele” é criar um muro da vergonha, porém, não esqueçamos que deveríamos estar sentados em volta do coreto de uma praça de interior ouvindo a banda passar.

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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