(Foto Ilustrativa)
_______________________________________________________
A música requer uma abstração e apaziguamento da alma, requer um esvaziamento e solidão no humano
_______________________________________________________
> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", assinadas pelo músico Ricardo Yabrudi
Sentado à beira da corredeira, em cima de uma pedra redonda, ouço o borbulhar das águas. Sentado à mesa da cozinha, só, preciso da conversa de crianças à minha volta, e seus desafinados cantos, solfejando a “Canoa virou”. Hermeto Pascoal ouvia música ao ouvir as vozes das conversas humanas faladas. Não tenho dúvida de que a voz é musical, por isso faz falta em ouvi-la em sociedade. É tenebroso o silêncio que apaga o convívio social. É torturante deixar de ouvir os sons de queixumes, mesmo que seja o clamor por um pedaço de pão. No sinal de trânsito, parado, ouço pedintes e ouço violinos, é uma composição rara, um dueto improvisado como um jazz que brota nas ruas.
Relaxar é o laisser aller, deixar levar, e ouvir com atenção a música das ruas, dos quartos inflamados de amor, do ranger de porteiras de fazendas barrocas, das cachoeiras, dos cantos dos pássaros. Ao se prestar atenção a esses fenômenos sonoros nos comovemos e nos sentimos mais humanos. Com todas as críticas à domesticidade, podemos revidar com o argumento de que o idealismo obscuro intelectualizante nos transforma em seres suprassensíveis mascaradores da realidade. O que deixa tenso é o apreciar de coisas simples com visões idealistas transcendentais metafísicas. Olhamos para o céu e as nuvens e já nos transportamos para outras dimensões, incluindo as teológicas. Comendo as refeições e a língua já é desprezada com seus atributos de gustação em detrimento das proteínas, fibras, aminoácidos associados à linhaça. O idealismo nos faz afastar da vida. Nossos sentidos foram para o final da fila esperando um sopro de misericórdia do intelecto para ser chamado de vez em quando a opinar. Na música o mascaramento por conta do erudito se acentua quando nos fazem pensar e pensar e pensar...
Por que tenho que pensar ao ouvir música? Não poderia apenas relaxar e ouvir sem interpretações? Não seria uma sinfonia cantos de pássaros em profusão com diferentes timbres? Por que não posso ouvir o som de um violino como um ranger de portas? Não sou eu quem decide? Talvez a cultura e a sociedade nos imponha um ouvido que tenha que ouvir com regras do “isso é bom” e “isso não é bom”. Entramos no terreno da “liberdade”, essa que tanto luta para brilhar, mas ofuscada pelas doutrinas dos intelectuais. A vontade aí é suprimida e dirigida sem nossa autorização, desviada de nossos olhos, apagada de nossa visão feliz, catártica e imediata. Tudo se faz “ideal”, e nesta vaga nos embalamos como náufragos indefesos em um mar revolto. A calmaria se expressa em espíritos livres sem medo do achincalhe alheio. Quer ouvir samba? Ouça. Quer ouvir jazz, choro ou blues? Ouça. Não ter medo de críticas e não se abalar com opiniões intelectualizantes são um grande avanço para o “relaxamento”.
Sons não são cores ou paladares. Não enxergamos o som nem seu gosto, apenas sua atmosfera, por isso é transcendente. Sendo transcendente não exige “opinião”, contudo, emoção ao ouvir o ato do laisser aller, deixar correr, andar, fruir. A música é a única arte que não tem expressão na realidade (Hegel), o que a deixa livre para apenas fruí-la. Sua interpretação semântica é duvidosa ao querer criar analogia com as línguas faladas. Fala-se das frases musicais como se a semântica se apoderasse das doutrinas e as regras da música colocando-lhe um cabresto. A música nunca se fará refém de nenhuma ideologia e não se curvará a nenhuma ciência porque não é uma delas, só pertence à fruição.
Relaxar requer “esforço”. Parece contraditório, porém, as doutrinas semióticas, filosóficas, deixaram e imprimiram nos homens um rastro e ordenanças de que devemos pensar em tudo e analisar cada momento de nossas vidas como se fosse uma obrigação. A filosofia idealista nos causa até hoje uma antipatia com a vida dionisíaca. Há os que se esforçam para afastar esse tédio da falta de liberdade, há os que se atrelam ao idealismo. Por isso, relaxar requer esforço. A meditação aí se faz sentida e necessária para esvaziar um saco cheio de regras e costumes de nossa sociedade intelectual repressora. A música requer uma abstração e apaziguamento da alma, requer um esvaziamento e solidão no humano. O som deve ser introduzido para enaltecer o espírito, cavar e galgar fragrâncias, perfumes indeléveis, gestos imediatos sem respostas e argumentos cognoscíveis. A denotação deverá ser assim, justa, imediata, rápida, imagem do já foi e já passou, isso é relaxar.