(Foto Ilustrativa)
Deveremos cultivar o espírito ouvindo
música erudita para alcançarmos uma
plenitude desejada pelo próprio
espírito que deseja evoluir
- Música séria nós ouvimos! Diriam os aficionados pelas sinfonias, óperas e concertos. As grandes salas para esse tipo de ouvinte oferecem uma “ginástica mental” para a compreensão das mesmas. Quem pensa que se delicia simplesmente ao ouvir Wagner, soltando o corpo numa viagem metafísica poderá se perder na compreensão e na complexidade das melodias e harmonia. A frase: - A música deve ser sentida, é verdadeira, porém, é “insuficiente”.
No campo da música complexa erudita, os grandes compositores, na maioria das vezes, compilam e reescrevem suas partituras com imensa paciência, esmero e questionamentos. Não só a inspiração, que é comum dos gênios, todavia, em suas composições a trama das melodias e da harmonia são um desafio para ele mesmo, que procura o melhor, para o inusitado, para o novo, para um deleite pensado. Ao ouvir, ele deseja que o ouvinte se aprofunde nas repetições numa digestão vagarosa e ruminante. É o ouvinte de “segundo nível” que se deleita e se assoberba de como o compositor conseguiu construir aquela composição. Aqui já não se basta mais na simples audição despretensiosa, porém, busca o porquê na composição e seus malabarismos.
Ouvir composições de caráter erudito é aceitar um desafio para as mentes. Prestar atenção em cada passagem harmônica e melódica é mister. Chega a exaurir em alguns casos a força mental que exige. Por esse motivo muitos não apreciam, pois o que é penoso aspira o asco e repugnância. Não é uma simples apreciação para uma catarse imediata, contudo, um acompanhamento sistêmico em toda a obra, pois há uma série de intenções que só se consegue observar ao longo de diversas audições. A beleza de algumas frases é entendida em algumas obras na vigésima vez. O contraponto, então, será o último a ser entendido, porque estará misturado com vários instrumentos que confundem a compreensão em um primeiro momento.
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Como cultivar então o espírito com uma arquitetura deveras complexa? Não é o espírito livre, pronto para o relaxamento e fruição em busca do prazer generoso? Essa é uma resposta difícil para uma pergunta difícil, porém, o próprio caminhar da audição “intensiva” construirá no indivíduo suas marcas próprias. Devemos perseverar, se quisermos “crescer” em gostos mais exigentes. Aqui se trata de exigência e não de “refinamento”. O refinamento que requer “status” pode ser questionado e abandonado neste momento para que se eleve a questão estética pura a um nível ótimo no indivíduo. Se deverá ouvir pelo ouvir, como intenção única própria, livre das máscaras prescritas pela erudição fantasiosa.
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O espírito se transforma em uma entidade que responde pelo “Eu”, pelo “Ser” que se cultiva e se modifica a cada “audição” em prol do crescimento mental e espiritual. A palavra “espírito” trilhou de forma penosa todo o percurso do pensamento humano, mesclando seu sentido filosófico ao sentido “Teológico”, confundindo mentes e criando antagonismos. A própria neurociência negou seu sentido afirmando sua “inexistência”, declarando que o pensamento ou as sensações são impulsos nervosos originados das sinapses. De forma lúcida não podemos negar o descobrimento e funcionamento das funções neurológicas, pois são baseados nesses fatos que algumas doenças são tratadas. Negar suas descobertas é fechar questão, seria como procurar e curar defeitos nervosos físicos com um Xamã. Bem sabemos hoje o que são doenças da carne e do espírito estudadas pelos antropólogos especializados em “tribos primitivas”. Talvez, essas tribos, de primitivas não tenham nada, contudo, uma evolução espiritual que ainda não captamos e não entendemos.
De modo geral, sempre existirão antagonismos e disputas estéreis entre a teologia, filosofia, xamanismo, Freud, Jung, Nietzsche, Sócrates, O Ser e o Não Ser. Porém, é necessário que nos posicionemos frente às questões espirituais, que são complexas porque nos movem em direção ao “transcendental”. O Sentimento na música poderá não ser simplesmente um desague de hormônios da felicidade em nossa carne, entretanto, uma percepção transcendente da qual nos fala Kant em sua “Crítica da Razão Pura”. A neurociência estará distante ainda de nos responder por quê esses afetos nos afetam. Nietzsche sempre usou o vocábulo “espírito” com prudência e boa colocação. Seu “homem de espírito livre” remonta uma acepção cuidadosa e estranhamente transcendental, apesar do seu posicionamento fisiológico mental. Acreditava ele que o pensamento aflora de forma peristáltica, entretanto, seu posicionamento filosófico e musical prescrevia algo de metafísico como um sentimento espiritual que move o gosto. Assim, cultivar o espírito com formas eruditas, até para Nietzsche, se torna aqui um aprimoramento para a alma (vocábulo que também usou), talvez não de forma e entendimento teológico, mas, metafísico.
“Cultivar” será precisamente aqui o termo propício para um crescimento. Plantar, junto ao cultivar, uma associação de esmero, prudência e desígnio. Ouvir nunca se desgastará, sempre será Necessário. Deveremos cultivar o espírito ouvindo música erudita para alcançarmos uma plenitude desejada pelo próprio espírito que deseja evoluir. Ouvir Chopin em detrimento de uma cantiga de roda não nos fará melhores, são obras distintas, contudo, não enxergar diferenças entre elas, um desprezo pelo conhecimento das diferenças. Saber “o que é”, prescindirá a inteligência humana, é o marco do pensamento (enxergar o que é grande em comparação com o pequeno é fato). Enxergar o complexo e compará-lo ao simples é igualmente importante, assim, o espírito enxergará o complexo como o cume de uma montanha a ser alcançada, não pelos prêmios, mas por uma vitória individual da busca pelo saber complexo que tanto incomoda os Acomodados com o simples que se bastam com a montanha mais baixa, menos elevada. Do alto enxergamos melhor. Do complexo enxergamos melhor o simples. Do espírito enxergamos e entendemos melhor a Carne.
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