(Foto Ilustrativa)
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O maior benefício que a música popular pode nos doar é o da liberdade no ouvir sem cobranças de interpretações históricas, harmônicas, melódicas ou semióticas
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O folclore agradece, a tradição se assoberba, o império da cultura solta fogos de artifício para comemorar o seu impulso. A música popular é o carro-chefe, a gerente de uma organização profícua que faz permanecer e estabilizar o que o povo e a massa preferem. Seu objetivo é quase imperceptível, porém, carrega uma força poderosa que é a do sufrágio. As decisões do gosto coletivo se dão assim, por um acontecimento inusitado, temporal e instantâneo. Sufrágios são sempre observados quando uma nação clama por mudança; é a hora certa no momento certo, e acontece tudo o que desejam num só momento, num único pensamento coletivo. O popular, o pop, é decidido sem uma liderança, em um sufrágio. As mídias, o marketing tentam entendê-lo para servi-lo. McLuhan afirmou que o “meio” (a mídia) é a mensagem. Não há dúvida de que as tentativas por parte delas têm tido resultado positivo, todavia, permanecem por um espaço tempo limitado à sua divulgação. O popular em sua íntegra graça pela permanência e sua temporalidade tem sua marca registrada. Pensemos: Quem é o autor da cantiga “a canoa virou”? Qual é seu sucesso e permanência? Quase todos nós sabemos que não sabemos responder quem é ou foi o autor, é a tradição. Essa é a química do folclore e do pop. Não sabemos sua gênese, autoria e muito menos sua duração. Por quê? Não importa, porém, o que importa é seu sucesso natural.
Ouvir a música popular, cujo folclore e a tradição estão incluídos, nos dá o conforto de estarmos ligados a todos. Coletivamente agrupamo-nos num só gosto numa só aliança, num só deleite. Pensamos que as mídias comumente criam seus sucessos, todavia, os caçadores de talentos e de obras musicais estão atentos a toda boa criação que corresponde ao gosto coletivo. É como eles adivinhassem de ter o poder de ver o futuro. O sucesso, preponderantemente, pode ser projetado com a massificação e o bombardeamento nas mídias, porém, a facilidade de se procurar uma música que tenha os “quesitos” do gosto popular-folclórico garantirá uma temporalidade maior e uma eficácia resoluta. Os “caçadores de talentos” são na verdade os “visionários” de um futuro - são os adivinhos que dirão: “Essa música, todos gostarão”. A cultura leva décadas para estabilizar certos parâmetros, não conseguimos mudá-la instantaneamente, contudo, podemos conhecê-la e alimentá-la com o que ela está acostumada. É com essa intenção que os caça talentos se aprimoram. Forçar um produto que dificilmente será digerido não “cola”. A decisão mais inteligente e rápida é o de dar o que a cultura pede; é alimentar o desejo coletivo “prevendo” o sufrágio.
Ora, se ouvimos o que estaríamos destinados a ouvir, a aceitação por nossos sensores estéticos estará alimentada e satisfeita. Desde que a música ouvida esteja nos parâmetros de uma tradição de décadas, nosso prazer será multiplicado. Talvez o maior benefício oferecido pela música popular seja o de nos encontrarmos sempre em nossa zona de conforto. Esse quesito é primordial para que o ser humano se aquiete. Obras musicais populares serão perenes na medida em que sua composição esteja nos moldes de cada pessoa que tenha a tradição incorporada em sua mente. Uma nova obra que lembre a outra estará nesses moldes. Associações de algumas melodias novas com antigas é um grande artifício de alguns compositores porque deixam o rastro e o sabor da antiga composição que está impregnada em seu córtex. Às vezes não existe a intenção de quase plágio, entretanto, quando acontece fortuitamente, a música nova popular se alavanca tomando um impulso para o sucesso.
Esses sabores antigos que retornam em um ciclo são benéficos e acalmadores para os espíritos sedentos da música pacífica popular - é como comer algodão-doce e deixá-lo derreter na boca. Inversamente o sabor rude das melodias e harmonias eruditas que nos fazem ruminar até o esboço da obra musical, na música popular nos embalamos como bebês numa berceuse. Se é por vias naturais que a música popular nos impõe seu costume deveremos aceitar seu rumo - direção sem volta que nos remete ao destino indelével. A força contrária, que nos faria retroceder ao simples, no caso a música erudita, terá sempre um vetor oposto ao da música popular, neste sentido, é claro. Seria a forma erudita versus a popular pendulando em se comportar forçando a mente e relaxando a mente, a gangorra entre relaxar e tornar ansioso, buscando o incompreensível, retardando-se nas metáforas musicais, atrasando a compreensão e em cada audição ouvir diferente para se fazer confuso, mormente, feliz.
Existem pessoas cujas escolhas não têm objetivos pragmáticos imediatos, até para ver um pôr do sol se preparam como para um casamento. Essas são as verdadeiras candidatas para se entregar à música erudita - não abrem mão do pensamento, da dialética e da razão para chupar um sorvete. As escolhas e combinações de sabores desse indivíduo são dilemas existências na hora da deliberação de um simples pedido de um gelato. A verdadeira face do degustador erudito está em receber o complicado para o complicar mais ainda em sua mente e em devaneios substituir por novas interpretações até que a obra se multiplique em conotações; assim estará satisfeito e em paz com sua apreciação complexa. No simples da música popular atingiremos um estado de espírito e de liberdade não conhecido pelos apreciadores do erudito. A liberdade de simples ouvir algo, até o que não se entenderá, fará parte de uma abnegação do intelecto e humildade em compreender os sons apenas como sons e não como metáforas semióticas musicais. O sentido de liberdade que a música popular oferece sempre nos deixará mais despretensiosos com relação à estética musical. Juntando os quebra-cabeças podemos garantir que o maior benefício que a música popular pode nos doar é o da liberdade no ouvir sem cobranças de interpretações históricas, harmônicas, melódicas ou semióticas.
Compreender o popular ou até o de não querer compreendê-lo faz parte do pacote da liberdade que urge para nos garantir o deleite despretensioso. Nietzsche faz alusão à talvez uma lenda que ele ouviu, comentando que um rei ao ouvir uma música ficou tão consternado que saltou do seu trono e feriu a alguns súditos que estavam presentes. Esse é o poder da música que também em alguns momentos se ouve com o instinto e não com a razão - essa que nos separa do fisiologismo e nos afoga na intelectualidade. Nos tornamos humanos, mais do que humanos, quando nos aproximamos de nosso fisiologismo e instintos. A música popular tem esse papel porque, principalmente, tem um caráter e gênese do sufrágio - “todos gostam porque todos gostam”. Explicar o sufrágio na música seria como explicar porque a cor branca é branca. Sassure explicou em seu curso de semântica que as palavras não têm explicação óbvia e não advindas de um processo onomatopaico. Assim é a música popular: “ninguém explicará o sucesso”, apenas o instinto responderá por ele.