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Gula

Overdose musical

A overdose musical vale tanto para os gourmets e gourmands da música; por analogia com a culinária são, respectivamente, os músicos e os ouvintes

Música  –  14/08/2018 12:47

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(Foto Ilustrativa)

A música sempre vai imperar enquanto atividade artística social, principalmente porque está amparada pelas rédeas da mídia que não deixará espaço, ou melhor, silêncio para as falas humanas

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", assinadas pelo músico Ricardo Yabrudi

Há os que se deleitam em maratonas musicais. Festas rave tem longos períodos de duração, festivais como o de Woodstock marcaram uma geração e criam uma atmosfera de revival, deixando água na boca em alguns desta nova geração; alguns gostariam até de voltar no tempo e poder participar desse evento que marcou para sempre a história da música pop. Os ensaios de orquestras são longos, também os são os das bandas de garagem. A rotina de ensaio do músico apela muito para a sua resistência. Seu trabalho se mescla com o prazer e parar de tocar não combina muito com a carga horária costumeira da maioria das profissões. Parar de tocar, quando se é amador, geralmente acontece quando já o músico está nocauteado. A mágica da música e seu domínio em relação ao músico sempre ganha força e produz resistência aos aficionados dessa arte. A overdose musical vale tanto para os gourmets e gourmands da música; por analogia com a culinária são, respectivamente, os músicos e os ouvintes. Por que tanta “gula” para esse apetite pouco entendido?

A catarse musical é uma das formas de gozo mais extensas. Sua duração, no tempo, não é como a da pintura ou escultura, que é interrompida, por olhares furtivos, fugazes, descuidados e às vezes desinteressados. Porém, na música somos embriagados desde o começo até o fim de sua audição. Num gozo eterno e desvario, uma música que durasse toda uma vida humana seria a maior overdose musical possível. Imaginem um bebê começando ao ouvir uma música, e esse passando pela adolescência e vida adulta só acabasse de ouvi-la na velhice, quando de sua morte, num pósludio, como um réquiem que abrilhanta e homenageia o seu fim, esee de um ser que passou a vida ouvindo uma canção interminável. Todavia, quando as luzes da vida se apagam, também cessa o som musical, dando lugar ao silêncio tumular. Quem o acordará desse sono silencioso que advindo da morte ainda não possuímos certezas?

Se alguém pensa que esta estória não tem personagem nos enganamos, pois somos nós mesmos - seres musicais por excelência, ouvindo canções, barulhos, ruídos, vibrações, num continuum. Só não percebemos que escutamos uma longa sinfonia durante a vida porque achamos que sons naturais, como o do trovão, não são música. Pelo contrário, música como a entendemos hoje, principalmente por causa do pensamento das elites, se tornou um código fechado que não admite que um canto de um galo não tenha função estética. O canto dos pássaros é um excelente exemplo, mesmo que saibamos que seja uma expressão de guerra contra invasores de seu território, contudo, não deixa de possuir o significado estético na expressão: Canto dos Pássaros, como o próprio nome elucida. Nascemos e vivemos bombardeados pela música o tempo todo, alhures, ainda devemos insistir no silêncio, de vez em quando.

Em casa estamos sempre ouvindo alguma coisa, mesmo que não nós, mas, alguém ao nosso lado com o celular ou algum tipo de mídia tocando algo. Na cidade, quando estamos nas ruas ouvimos sinfonias e poli sinfonias de todos os tipos porque os sons de diversas fontes musicais se misturam, criando uma salada, confundindo nossos ouvidos por harmonias, como trepadeiras parasitas sugando nossa seiva que alimenta nosso apetite. A overdose musical está sempre nos Assolando nos deixando Inquietos. Muito da ansiedade humana considerada fruto de algumas ações de fundo emotivas também podem ser fruto dessa overdose sonora que invade o mundo ocidental barulhento e controlado pelas mídias. Esses veículos midiáticos sobrevivem bombardeando nossos ouvidos com informações que geralmente não nos interessam, gravando e ocupando nossos cérebros com sinapses e armazenamentos inúteis provocados pela insistência de suas ações. É como alguém nos fazendo engolir uma bebida amarga sem nosso consentimento. Devemos nos lembrar que nossos ouvidos não se fecham sozinhos como os olhos protegidos pelas pálpebras.

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Tapar os ouvidos socialmente, por sua vez, é visto como um gesto de desprezo para com o mundo e com o próximo, que geralmente é evitado, fazendo de nós seres abertos a tudo o que acontece no mundo com seus acontecimentos sonoros. Somos realmente vítimas dessa overdose, mesmo que não queiramos.

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No entanto, mesmo que estejamos sendo bombardeados por todos os lados, por uma chuva de sons, ainda persistimos em visitar sítios barulhentos, onde procuramos o prazer e o deleite musical intenso. Uma casa de shows com DJs, ou mesmo num aniversário ou casamento somos quase impedidos de falar e colocar nossas conversas em dia com amigos antigos que não víamos há tempos, devido ao volume de som que inunda esses espaços. Aqui encontramos um embate entre os que necessitam de conversas, contra sons que vêm desses lugares festivos. Ir a uma comemoração hoje significa estar preparado para falar gritando, ou procurar um cantinho mais reservado para colocar nossas conversas em dia.

A música sempre vai imperar enquanto atividade artística social, principalmente porque está amparada pelas rédeas da mídia que não deixará espaço, ou melhor, silêncio para as falas humanas. Que se calem todos e vamos ouvir o mais novo hit e lançamento da mídia. Será pelo rádio, televisão ou por fontes inúmeras nas ruas que as próprias pessoas contribuem para o aniquilamento do silêncio. Necessitaríamos de uma floresta para diminuir o estresse provocado pela música e mesmo assim os sons das cachoeiras borbulhariam em nossos ouvidos dizendo: Estou aqui cantando a música da natureza.

Não há como fugir, seja da mídia, seja da natureza. Fomos moldados pela sociedade consumista para estarmos sendo sempre bombardeados com sons, sejam eles musicais ou naturais. Necessitaríamos de pálpebras auriculares para a efetivação desse controle. Como ainda nossa evolução não alcançou esse estágio vamos nos poluindo com toda a sorte de barulhos, sinfonias, canções e que essas ou esses possam nos agradar. Que as marteladas no apartamento do vizinho de cima se tornem sinfonias, que o choro e a birra de uma criança seja para nós um grito de clemência e necessidade para que a socorramos com amor. Que fogos de artifício sejam sentidos como estampidos de felicidade, mesmo que sejam a comemoração do gol de uma equipe esportiva que não seja de nossa preferência.

O que falta a nós não é a moderação do excesso de som, todavia, a compreensão e aceitação resignada desse bombardeamento sonoro que nunca terá fim porque nossos ouvidos deverão estar sempre abertos para prevenir uma calamidade. Contudo, sofreremos desse mal da overdose, refletida pela falta de pálpebras auriculares. Os sons que nos faziam ajudar a nos alimentar na era primitiva, como o barulho de uma presa que estávamos procurando, é a mesma vibração sonora que uma obra da construção civil produz quando está sendo construída e nos amola nos dias de hoje. Nossos ouvidos não são seletivos. Toda informação sonora deverá ser decodificada no nosso cérebro e posteriormente tomadas as decisões de ação. Nossa vida hoje não é mais a selvagem da pré-história. Os perigos são diferentes, como por exemplo, a buzina de um carro que nos previne de uma colisão ou atropelamento. Por isso, nossos ouvidos não devem estar tapados. Consequentemente, uma torrente de barulhos que não nos pertencem invade nossos ouvidos ofendendo nossos cérebros, ocupando nossa atenção com o que não é da nossa conta, nos tirando quase sempre a atenção para assuntos sonoros que não nos interessam. Todavia, é o preço que pagamos pela nossa vida que é vigiada pelos nossos ouvidos que não foram feitos para apreciar música, mormente, para nos livrar de situações de Perigo, principalmente.

A Boa Música só pegou carona nesse Instinto para que fosse glorificada como forma elitista, social. Agora separamos que o que não é música não presta, desligando-a do instinto, achincalhando-a como se este fosse um ato primitivo. Por isso, muitas pessoas equipadas com seus fones de ouvidos são atropeladas nas ruas porque trocaram a proteção do instinto pela catarse musical. Deveríamos privilegiar o instinto acima de tudo porque esse nos preserva a vida, a música estará num segundo nível, apesar de sua beleza incomensurável, e que nos torna homens de razão e de filosofar estético.

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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