(Foto Ilustrativa)
O que importa é o respeito por qualquer forma de arte e por qualquer pessoa que queira demonstrá-la
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Imaginem o seguinte diálogo doméstico, corriqueiro, que poderá nos mostrar a profundidade do olhar estético das obras de arte, sendo esta, uma conversa costumeira entre progenitores e sua prole.
- Mamãe fiz um desenho pra você!
- Que lindo, minha filha! Quem é esta figura aí no papel?
- É você.
- Mas meus braços não são linhas, eles têm volume.
- O que é volume mamãe?
- Você vai aprender na escola, ainda é muito nova.
- Você gostou?
- Adorei.
- Ainda bem, mamãe, fiquei por horas desenhando só pra você achar bonito.
- Obrigado, minha filha. Te amo. Você é a melhor artista que eu conheço.
- Jura?
- Você é muito dedicada, parabéns.
Nesse pequeno e corriqueiro diálogo podemos inferir algumas questões. Pautamos que, mais que comum, é o que acontece na primeira infância com as proles de nossa sociedade. Este é um fato importante porque ao mesmo tempo que desenvolve a criatividade e o gosto infantil também coloca em cheque os padrões burgueses das gerações que geralmente preterem, desconhecem, impedem o conhecimento da arte e de sua vanguarda. O livre desenhar das crianças são o espelho natural e verdadeiro da art pour l’art, que zomba dos perfeccionismos e realismos. Essa arte que alguns pais chamariam de medíocre é na verdade o desejo profundo do contemporâneo. É tão verdade que não gostam, e falsamente mentem para as crianças que gostaram, que jogam essas lindas e perfeitas obras no lixo, misturadas a papeis onde estão escritas as listas de compras do supermercado de ontem. Encontraremos, entretanto, algumas famílias, cujos representantes entendem o valor dessas obras. É nesse momento que nascem os grandes artistas que não foram podados desde a infância. O pendor artístico deve ser notado com muita cautela em todos os níveis, inclusive também, nos casos de habilidades não artísticas, como por exemplo: as ciências.
O tempo de confecção da obra por uma criança é muito rápido. Estando ela elevada à condição de artista, dada a dedicação integral de seu tempo para com a obra, devemos esperar o respeito pela obra por parte da mãe (no caso do nosso diálogo), ou algum responsável. A objeção da mãe, pela crítica da falta de volume no desenho ou sua deformidade, é uma poda que deveria ser repensada. Esse processo de rejeição, interjeição é a princípio comum porque espera-se na visão corriqueira que o artista demore na confecção de sua obra. Vejamos: quem será o artista nos dias de hoje? O famoso? O que demora na confecção da sua obra valorizando mais a técnica do que a inspiração? Uma ideia ligeira com confecção ligeira não poderiam ser contados como arte? O que uma criança tem de diferente de um Rubens ou um Picasso?
Talvez o primitivismo infantil tenha sido copiado por grandes artistas como Volpi. A ideia perniciosa de que a arte terá um tempo para sua confecção e que os artistas só serão artistas mediante um título recebido por uma sociedade deveriam ser banidos do mundo. Contudo, regras como o de um pintor estar catalogado ou não, se justifica pelas próprias regras em que ele se submeteu e lutou para estar envolvido em semelhante teia que a sociedade armou. Uma criança quer agradar alguém, a um responsável, ou a si, almeja apenas estar desenhando e descobrir um mundo ideológico que se fixa numa folha de caderno rasgada.
A imagem de um mundo metafísico
A expressão da pintura ou impressão talvez seja a imagem de um mundo metafísico descoberto, onde ela pode mergulhar suas ideias e fixá-las em forma de um desenho que não é a realidade, entretanto, aparenta copiá-la. Na sua mente o desenho é cópia (mimese) do real. Essa forma cartesiana de ver o mundo não está submetida aos moldes contemporâneos escolares, mas desde os primórdios assola o homem. A arte rupestre esbanjou esse idealismo platônico-cartesiano-kantiano sem conhecê-lo. A instintividade do homem primitivo o obrigou a estar de mãos dadas com essa visão idealista que seria promulgada por Parmênides milênios à frente de sua época, esse filósofo, o pré-socrático que inventou o ser e o não-ser. Quando uma criança rabisca uma folha de papel, ela retroativamente faz o mesmo gesto do homem primitivo que desenhou na gruta em Altamira. Não concordar que ela é uma artista é dizer que os bisões pintados ou as formas magrelas de arqueiros dos desenhos rupestres não deveriam estar nos livros de história da arte como o estopim da cultura e bandeira dos primórdios da arte. O arquiteto, da mesma forma, tem em seus desenhos primários a alma do futuro projeto que será construído e que se gastariam talvez milhões para o custeio de sua construção. O que não se daria pelos desenhos de Oscar Niemeyer, seus esboços, talvez infantis ou mal desenhados “na visão de uma sociedade preconceituosa”, sem formação artística? Na verdade, seus esboços são maravilhosos.
Os olhos de uma sociedade inculta preconceituosa é que rotula o bom de ruim. Não estariam os desenhos de Niemeyer agora num museu? Desenhos de Van Gogh são leiloados por milhões de dólares, talvez para ele apenas estudos, e alguns deles perdidos e enterrados. As fases primitivas de muitos pintores são descobertas e promulgadas depois de sua morte, quando ainda vivos, no obscurantismo, escondem a sua primeira fase como infantil. Platão queimou suas peças de dramaturgia assim que conheceu Sócrates, estão perdidas infelizmente. Assim são os rápidos desenhos de nossas crianças, esboços para um crescimento futuro. Estará sempre esse futuro assombrando o presente, esse futuro que não vem e está sempre chegando, perto, ameaçando todas as obras presentes, jogando no lixo tudo o que é bom e pertinente. O futuro é a promessa do que não é. Nietzsche estava certo em condená-lo, e se aborrecer com ele dizendo que só nos traz o temor e a esperança. O que não daríamos pelo esboço do desenho do coliseu em Roma? O que não daríamos hoje pelos desenhos infantis de Renoir? Guardemos então os desenhos de quem amamos como símbolo de nosso presente que virará passado com sabor de presente.
Na música, nosso principal tema, deveríamos velar as composições não ouvidas, aquelas que ficaram gravadas em fitas K7. Muitas composições de Raul Seixas ainda estão guardadas. São como os desenhos preteridos! As partituras de Bach, que ele escrevia para as missas de domingo, em sua maioria estão perdidas. Que lástima! Deveríamos guardar essas garatujas infantis em pastas, não com a intenção de que valerão algum dinheiro no futuro, porém, pelo respeito ao tempo de confecção da arte. Esse é o fator a ser respeitado porque é quando o homem troca o tempo pela sua vida. Sêneca, nos lembra que a vida bem vivida se chama “vida”, a mal vivida chama-se “tempo”. Gastar o seu tempo desenhando ou compondo canções, mesmo que rapidamente como esboços, deverá ser visto como um princípio vital. Os homens são muito rigorosos a respeito do tempo. A sociedade dos homens comuns estará sempre criticando o que é rápido, para ela as ideias rápidas junto a obras artísticas onde se vê claramente que não se gastou muito tempo em produzi-las leva o rótulo de ruins. Tal aconteceu com Basquiat no começo de sua carreira. O que era visto como esboço, hoje é respeitado mundialmente. Quantos Basquiats serão perdidos ou desanimados por gente que não entende o que é o “tempo da confecção da obra de arte”. Esse tempo não tem regra. Se não tem volume o desenho também não importa. O que importa é o respeito por qualquer forma de arte e por qualquer pessoa que queira demonstrá-la.