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A música fala pelas outras artes

Em todas as épocas nossos porta-vozes foram os músicos, artistas-compositores

Música  –  24/01/2019 09:17

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(Foto Ilustrativa)

As letras das músicas, como dizem popularmente, apagaram a melodia e a harmonia, que se acostumaram num ciclo harmônico enjoativo, repetitivo numa pasta incomível, indeglutível, que faz mal ao estômago, fisiologicamente perversas à saúde

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi  

A música sempre existiu ao lado do homem apaziguando-o, acalmando-o, tornando-o consciente da vida trágica. O ser primitivo deverá ser cantado através de um coro. Se a vida foi ou deveria ser vista com o olhar trágico deveríamos consultar Nietzsche. Seus seguidores do século XX foram unânimes em concordar que a vida não é um mar de rosas. Contudo, quem cantará a ode ao homem? Quem será seu menestrel, ou seu Dionísio, representado pelos 15 sátiros no coro ditirâmbico? 
 
Em todas as épocas nossos porta-vozes foram os músicos, artistas-compositores. Tanto pelo entendimento filosófico, tanto pelo lado estético, o homem tentou expressar e entender a vida e sua intenção. Principalmente pela arte tentou entender o que se passava com a humanidade. Os laços afetivos, oportunidades e sentenças foram os quesitos que provocaram sua desconfiança para com a vida. Os por quês, as tragédias, os insultos, a morte acossando a pele deveriam ser entendidas para o alento da alma. 
 
Homem filosófico x religioso 
 

O espírito inquieto primitivo tornou o homem filosófico em homem religioso, asceta, cantador de seus males, reclamando, sem procurar o entendimento da sua dor. Tudo posto num caldeirão, esse abraçou os ingredientes, formando um caldo espesso com gosto de vida trágica, porém, essa poção teve uma resposta eloquente musical. O coro ditirâmbico no teatro grego tomou o lugar dessas dores, e dessas transformou em entendimento, não o do saber filosófico socrático, com a comédia ática, mas com a música que vinha desse coro mascarado. 

A alegria risível do saltitar e do pular, do dançar, manteve no ator sátiro grego a voz musical do acalento. Cantar a vida como ela é: “trágica”, deu ao homem grego da plateia das arquibancadas a satisfação, a alegria de conviver com a tristeza, fazendo dela não um antagonismo, mas uma verdade imutável do ser. Os funerais, adultérios, incestos proibidos, consolidados pelo destino já não assustavam mais o homem grego pré-socrático. Além do bem e do mal no curso vitalício humano estaria o consolo do coro ditirâmbico que cantaria as mazelas da vida como o fulgor e beleza da arte. 

Em busca do mundo dionisíaco 

Neste nosso mundo contemporâneo manchado pelas virtudes aristotélicas procuramos pelo mundo dionisíaco. Quem é nosso coro trágico, quem nos representa? Que arte musical substituiu os 15 sátiros, que entoavam seu canto e sopro das flautas pelas ruas gregas, a vida trágica dionisíaca-apolínea? Onde estrão essas vozes, onde estarão nossos músicos cantores, dançarinos, e também de nossa vida conturbada e pouco entendida? 

Possuímos ainda os falsos valores de que a felicidade deva bater à nossa porta sempre, onde o infortúnio não nos procurará. O descontentamento com a vida, principalmente com o olhar do consumo, traz o desconforto que a nossa música contemporânea não mais canta a dor, apenas a felicidade. Num malabarismo poético fraco, se contorce em piruetas se fazendo de vítima, sofrendo um adultério, quando no meio da letra se transforma em herói feliz trocando o que foi bom por um outro artigo humano, como se o sentimento pudesse ser transmutado de dor para felicidade com um estalar de dedos. Diz: “troquei um amor por um outro amor”, como se o amor fosse uma pessoa-objeto. 

Amor e dor 

O amor é um sentimento, e vem junto no mesmo pacote da dor que deve ser sentido e entendido como uma perda, um óbito, uma morte. Na música popular, que é o espelho das ruas, não assistimos mais ao sofrimento, mas sempre um convite à reconciliação dos amores ou a fossa que é trocada por um outro conhecimento amoroso, um amante que nos faça feliz. Ninguém mais sofre, todo o sofrer é trocado, precisa ser trocado para que a felicidade reine como um déspota monopartidário, totalitário. É proibido sofrer, e se alguém sofre devemos apagar o fogo que consome o homem, agora o homem eternamente feliz. 

Tanto nos gêneros advindos do samba, quanto do sertanejo atual a felicidade está quase sempre como objetivo a ser realizado, mesmo que seja por um efeito do “deus ex machina”. Algum amor, nestes cantos populares, substitui um outro amor para que a felicidade esteja sempre na superfície desse mar plano sem ondas. A rugosidade dos oceanos perturba o amor feliz. Esse deve ser bem-comportado, sem angústias. O adultério sempre visto unilateralmente sem pudor para quem o comete é cantado sem que possua o teor trágico, mas de uma alegria única egoísta. Porém, esse adultério, quando sentido pelo outro lado, destrói a felicidade provocando em quem sofreu; a dor, a procura frenética pelo revide e ressentimento que o faz mergulhar na promiscuidade para se vingar da infelicidade. O homem não está mais contagiado pelos seus sentimentos, contudo, fascinado pela objetivação da felicidade versus infelicidade.   

A ajuda da poesia 

Onde estão nossos cantores, o coro ditirâmbico, personificados? A música associada ao lirismo perdeu sua força dionisíaca, mas, mesmo perdendo, não é motivo que se desfaleça, clame sempre pela ajuda da poesia que cavalga em seu lombo. É como o sátiro de forma perversa que se fantasia de homem da cintura para cima e bode da cintura para baixo (primitivamente como equino), contundentemente, faz ao topo de sua cabeça um adorno em chifres, como um ponteiro natalino, metade festa, metade tristeza; ele dança, porém, uma dança fúnebre de seu enterro que outrora foi vida. 

O homem compositor hoje racional é Apolo, as pernas do bode, animal fisiológico, o Dionísio de agora, tem nos chifres a coroa expiatória do fracasso de sua música melada pela felicidade eterna, como verdade imutável. As letras das músicas, como dizem popularmente, apagaram a melodia e a harmonia, que se acostumaram num ciclo harmônico enjoativo, repetitivo numa pasta incomível, indeglutível, que faz mal ao estômago, fisiologicamente perversas à saúde. O choro e a música palatável de Jacob Bitencourt, Juventino Maciel, estão esquecidas e confinadas a poucos e parcos ouvidos. Mesmo sua influência harmônica e melódica não chegou a frutificar, pois a mídia pasteurizou a composição musical, dando origem a essa pasta, que se fosse apresentada inteira em um banquete estaria conformizada num animal morto desconhecido dos compêndios de zoologia. 

Hipocrisia dantesca 

O que fazer? Onde procurar a solução para o desastre? Há, haverá saída? Sim, não. Se Richard Wagner fracassou na opinião de Nietzsche, quem salvará o mundo dionisíaco de hoje? Apolo já foi longe. Sua imagem onírica, sua razão, esse mito de irrealidade já se concretizou e assentou suas bases na poesia sem a dança, sem a alegria, sem o pular, sem o saltitar, mas o quieto, sofredor racional. Precisamos de música e dança puros para desinfetar o ar racional. Já temos lirismo demais. Os consortes rítmicos deverão prevalecer. A volta ao passado pré-socrático deverá ser uma obstinação, caso não, viveremos numa hipocrisia dantesca, em que o julgamento já se antecipa nos alojando ao fim, acompanhados de Virgílio. 

O recomeço de uma nova história da música e sua revolução não vingaram com Wagner, apesar dos incentivos de Nietzsche na primeira fase de sua amizade com Cosima e seu esposo. Os compositores sempre caem em ciladas pela ganância da prosperidade. Se precisam de recursos financeiros, compõe o que o povo quer (panem e circenses). Mozart viveu esse impasse e sua realidade com ganância, mesmo assim morreu pobre. Não devemos nos esquecer que o público é a peça da vida como no teatro pré-socrático. Hoje está dividido e aprisionado pelo gosto alienígena da mídia capitalista. O gosto deverá nascer pelo nascimento da tragédia e principalmente pelo estartar do “individuum”, oposto ao gregarismo reativo que conduz a diligência do quarto poder (as mídias). 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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