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Damnatio Memoriae

Apagando a memória de homens na história

Se uma sociedade ou grupo político reconhece um cidadão como benfeitor, com sua magnanimidade e magnificência, essa é, como diz o ditado: A voz de Deus

Música  –  20/02/2019 19:57

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(Foto Ilustrativa)

O “Damnatio Memoriae” é uma canoa furada, um perigo que corre não quem sofre, mas quem condena; é uma forma de tirania, que mais tarde pode gerar alguns frutos podres, que poderão contaminar o ventre da vida de quem moveu a prática do esquecimento de um homem honesto

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi 

Quem não se lembrará de Villa-Lobos? Talvez os que não estão afinados com a música erudita não tenham conhecimento da existência dele, contudo, seu nome está estampado em ruas, museus e em diversos outros sítios no meio cultural. Bach indiscutivelmente um dos melhores compositores do barroco, nunca terá sua memória apagada, nem rejeitada, principalmente pelo meio musical erudito. Nietzsche, apesar de rejeitado em sua época foi reconhecido post mortem, sendo hoje o filósofo mais lido da contemporaneidade. O que o homem recebe como homenagem não lhe deve ser tirado, principalmente porque, como diz Aristóteles: “é mais virtuoso conferir honra que recebê-la”. Se uma sociedade ou grupo político reconhece um cidadão como benfeitor, com sua magnanimidade e magnificência, essa é, como diz o ditado: A voz de Deus. 

Imaginem, então, desonrar uma divindade? Já houve muitas desonras a divindades, convém lembrá-las para aprendermos a não mexer com fogo. Com os homens, que são espelho de formas divinas, não é diferente, estamos nos baseando em quase todas as sociedades atuais, contemporâneas, que são religiosas por excelência. Nesse rol estão imersas: o catolicismo, protestantismo, hinduísmo etc. Todas as sociedades religiosas desde a Grécia antiga até hoje acreditaram que seus deuses possuíam a forma humana, ou melhor que a forma humana, tinha a face dos deuses. Desonrando os homens se desonra Deus, ou os deuses em uma sociedade religiosa politeísta. 

Configuração humana imagética 

Antes da aparição de Jesus de Nazaré, o filho do homem, como ele próprio se intitulava, como o representante divino em forma humana, já os gregos tinham em sua mitologia essa configuração humana imagética, descrita por Hesíodo. Esse poeta escreveu a Teogonia, que descreve a gênese dos deuses gregos, e que esses deuses são humanoides, e de maneira nenhuma deveriam ser desonrados ou ridicularizados ou achincalhados. Ifigênia foi sacrificada, essa era filha de Agamêmnon, rei de Micenas, porque esse, provocou a deusa Ártemis. Ao caçar um cervo em uma floreta sagrada, gabou-se desse feito insinuando que era melhor caçador do que ela. 

Em castigo por essa desonra, irritada Ártemis cessou os ventos que levariam as naus para atravessar o Mar Mediterrâneo e levar as tropas gregas para Tróia. Exigiu, no entanto, em troca da volta do sopro dos ventos, que a filha de Agamêmnon fosse sacrificada. A desonra pode provocar a ira divina e se for uma desonra humana, antipatia e desgaste de quem desonrou. Logo que Ifigênia foi sacrificada, os ventos retornaram e a guerra de Tróia se iniciava com a partida dos navios gregos. Humanos honrados não devem ser desonrados assim que recebem a honra, pois na sua honra são como deuses no panteão, pois estão nas estátuas, nos livros, nas fotografias, nos vídeos. 

Uma prática perversa 

Apagar a memória dos humanos, é uma prática perversa que se chama “Damnatio Memoriae”, que foi muito usado na Roma antiga, através de um processo instaurado ou pelo senado ou por vontade de um imperador. Mesmo com toda a maldade do imperador Calígula, o imperador Claudio impediu que o processo de “Damnatio Memoriae” fosse concluído. Alguém que fosse considerado figura que colocasse o nome do grande império romano em desgaste era condenado, sua memória sofreria essa pena: o Esquecimento. Dois imperadores romanos apenas sofreram esse castigo oficialmente, o imperador Domiciano e o coimperador Geta. Os Judeus na época de Jesus também tentaram apagar o título maior que recebeu dos cristãos, seus seguidores, que o tratavam como Rei dos Judeus. Foi assim que entrou triunfal no nosso conhecido domingo de Ramos, montado em um jumentinho. Mesmo assim, não entrando numa carruagem, como aquela em que Elias foi arrebatado, não ficou sem a honra que o próprio governador da Judéia, Pilatos, um romano, lhe concedeu. 

Em cima da cruz o governador da Judéia mandou escrever: Jesus Cristo o Rei dos Judeus. Nos lembra o evangelho que foi escrito em três idiomas: o latim, o hebraico e o grego, exigindo uma redundância. Descontentes os judeus quiseram apagar sua honra e memória, tentando aplicar o “Damnatio Memoriae”, dizendo que Pilatos deveria ter ordenado escrever de outra maneira, propondo uma nova inscrição, assim: aquele que se diz rei dos judeus. Porém, o próprio governador da Judéia respondeu: O que Escrevi, Escrevi. Assim devem se portar os grandes políticos como Pilatos, que mesmo como pagão, viu em Jesus uma nobreza que o povo lhe conferiu, dada sua bondade e carisma, nunca voltando atrás no seu ato: Palavra de Rei não Volta Atrás. O povo conhece seus homens nobres. Não é bom que voltemos atrás em nossas decisões, pois podem afetar e provocar uma rede de conflitos, instaurando controvérsias. 

“Ficar na geladeira” 

Nossos músicos, como artistas, são um caso especial, porque só podem ser lembrados se forem ouvidos. Só podem ser ouvidos se forem tocados nas mídias. Se essas não tocam suas obras musicais, provocam sem querer o “Damnatio Memoriae” - é o que chamamos de: “ficar na geladeira”. Atores que não são chamados para atuar na TV aberta sofrem do apagamento de sua memória. O ditado popular diz: quem não é visto, não é lembrado. Os pintores e escultores, por sua vez, têm uma atenuação nesse castigo, porque geralmente os grandes artistas plásticos têm suas obras expostas nos museus, nas exposições permanentes. Já com as obras musicais, essas só são lembradas quando apresentadas. Na dramaturgia, a lembrança só se torna realidade quando uma peça entra em cena ou é lida como literatura, sem a encenação. 

A memória e a lembrança dos artistas, dos personagens públicos, estão diretamente ligadas à sua constante divulgação. No caso de nossos baluartes da MPB, onde estão suas lembranças agora? A obra que Renato Russo nos legou, parece ainda jovial e é cantada pelos jovens ainda adolescentes, como uma voz que pulsa um sangue ainda novo, mas o que diremos de Geraldo Vandré? Onde estará? Talvez mereça um revival. O infortúnio de algumas músicas populares, por não estarem em voga, se dá pelo motivo de não mais estarem conduzindo uma ideologia atual. Uma boa composição talvez seja aquela que toque uma aspiração Ontológica. 

O que é atemporal na música 

A ontologia é aquela que fala do ser, aquele ente que perpassa a história, na temporalidade, porém, sendo atemporal. Por isso, as letras que falam de amor duram mais e sejam mais lembradas. As letras politizadas, às vezes, caem no esquecimento porque o objetivo já foi alcançado, tornando-se caducas, porque já construíram a casa da democracia tão almejada e dispensaram os pedreiros da sua construção, porque já está concluída. 

A música, tanto popular, quanto a erudita, sofrerá do “Damnatio Memoriae” de forma intencional e não-intencional. O esquecimento estará na sua poética, se essa está na modinha, na baila do momento. Compor de forma ontológica é uma maestria para driblar o esquecimento. Drummond é um gênio da ontologia, Bandeira também, Cecília Meireles na sua simplicidade, um assombro. Guimarães Rosa, todavia, fugiu aos cânones, pois com sua complexidade literária, ao contrário de muitos, desafiou todo mundo e os convidou para um duelo entre o entrar para a erudição ou cair no próprio esquecimento de seus cérebros. 

O panteão dos esquecidos 

A “Damnatio Memoriae” nos perseguirá até com nossos entes familiares. Se somos perversos com a família, essa poderá nos isolar. A maldade ou a banalidade do mal estará sempre convidando alguém a participar do panteão dos esquecidos pela sociedade. Pior para aqueles que desonram quem já foi consagrado honrado por uma sociedade, principalmente, se tiver sido honrado por uma entidade de classe. Mudar o nome de uma rua, ou de um estádio, ou de uma escola é como mudar o nosso próprio nome. Imaginem se mudarmos o nome dos bairros, ou até de um país? Generalizadamente estaremos instaurando um Caos. 

Troque o nome de um filho ou o nome de um artista consagrado. Um repórter, na sua vez de perguntar, iniciou assim a sua entrevista, dirigindo-se a um musico inglês famoso: “Mister Gordon?”. O integrante do The Police o interrompeu dizendo: “não conheço nenhum mister Gordon, meu nome é Sting”. Mesmo sabendo todos da entrevista coletiva que seu nome de batismo era Gordon Matthew Thomas Summer, Sting se recusou iniciar a entrevista com o jornalista, porque não reconhecia mais seu verdadeiro nome frente as mídias, honrando sua alcunha artística, essa que o público consagrou. 

O tiro pode sair pela culatra 

Uma vez consagrado um título, não convém tirá-lo ou mudá-lo sob pena de muitas controvérsias e desapontamentos. O “Damnatio Memoriae” é uma canoa furada, um perigo que corre não quem sofre, mas quem condena. É uma forma de tirania, que mais tarde pode gerar alguns frutos podres, que poderão contaminar o ventre da vida de quem moveu a prática do esquecimento de um homem honesto. Pior do que apagar o nome de alguém é apagar o seu próprio, pois o tiro pode sair pela culatra. Na arte, principalmente na música, onde é a voz que incessantemente denuncia os abusos, muitos tentaram apagar os nomes de heróis-músicos, sem sucesso. 

Quanto mais tentaram apagar a luz que vinha de uma chama ardente, mais o oxigênio do sopro fez incendiar e aumentar o fogo, que vinha de suas mensagens. Acautelar-se em pensar duas vezes antes de desferir flechas corrosivas cheias de veneno em uma pessoa ilustre, como os artistas, homens de bem e até clérigos, será considerado uma virtude, é melhor calar-se e escutar primeiro o que esse fez e respeitar sua honra. Uma obra e serviços a uma sociedade são uma chama eterna que não se apaga com um leve sopro da condenação. 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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