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Damnatio Memoriae II

O esquecimento e o abandono dos estilos, das obras de arte, da música

Os psicanalistas, os poetas e as canções

Música  –  26/02/2019 10:19

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(Foto Ilustrativa)

Aquele terno preto que enterra os grandes estilos estará sempre na moda porque é a vestimenta do carrasco daquela linda canção que cantamos no divã   

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi 

Por que as pessoas são esquecidas? Porque alguns estilos são esquecidos? Quando é que a lembrança vem à tona? A nostalgia é um sentimento. Por que, e para que lembrar do passado? São questões que respondem pelo esvaziamento e abandono de uma obra de arte. Por que deixamos de ouvir uma canção, se ela nos traz alegria, conforto psíquico, respostas para a nossa vida, coragem porque alguém partiu, sofreguidão por uma perda? Mas se ouvimos, é acalento para a alma, é quando o lirismo nos conforta. A canção diz que mesmo com algumas perdas ainda possuímos ganhos. Nossos compositores, esses poteas-músicos, de alguma forma nos ajudam a entender e nos explicar o que alguns familiares e amigos não conseguem. Em algumas famílias, alguns parentes não nos apresentam nenhuma solução para nossas queixas, impiedosamente, criticam e nos ferem abrindo mais a ferida de nossos erros. Os poetas são mais irmãos que alguns de sangue, não nos conhecem, contudo, brincam com a tristeza em suas linhas-versos, malabaristicamente, transformam-na em alegria, enaltecendo a vida. Eles não têm medo de nos ferir, pois não nos conhecem, entregam-nos a verdade para que ela nos cure. 

Assim, também são os nossos psicanalistas, é bom que não nos conheçam para não nos fazerem derramar lágrimas onde poderíamos encontrar o riso, com sua ajuda. São figuras simpáticas, entretanto, frias, porque são nossas “sombras”, rebatem nossas dúvidas com mais dúvidas, perguntas com mais perguntas e esperam as respostas de nós mesmos. Assim também são nossos poetas, compositores de nossas canções, ainda bem que não nos conhecem, como os psicanalistas, são como o corifeu que indaga. Esse teatro da vida nos elege como protagonistas. Quem será o diretor da peça de nossa vida? Nós. Qual será o nosso roteiro? O nosso. Nossa cena é uma comédia ática, entretanto, deveria retroceder na história da dramaturgia e ser uma tragédia. Por que não uma tragédia? Isso assusta a nós contemporâneos, entretanto, não assustava o homem grego sabedor de seu sofrimento diário, ao longo do jugo e servidão de sua vida acossada pela tristeza que o devir (o caos da vida) oferece. Somos o diretor de uma peça vital, se clamamos por ajuda, por orientação dramática, acercam-nos os psicanalistas e os poetas. 

E os remédios que os substituem? Para que remédio para a angústia ou a depressão? Leia um bom livro. Vá ao teatro. Vá ao cinema. Vá as praças, tomar sorvete, beijar quem quer seu beijo, estar com alguém que gosta do seu sorriso, acalmar sua alma com outra alma. É com esse discurso que os poetas e os psicanalistas te põem de pé. A arte é o melhor remédio inventado pelos artistas que te separam do mundo criando um nicho, um ninho, uma proteção que te distancia, até da morte. Vivemos sofrendo pelo passado, contudo, esse é a pedra que não podemos mover. Essa pedra mais pesada que o homem carrega com ele é colocada em um divã que afunda você, em nervos aflorados. O divã se transforma num moinho, que tritura a pedra, dela fazendo um pó fino, como cinzas que seriam jogadas ao mar, num ato fúnebre. Essa incineração pela moagem é o fogo que os poetas e os psicanalistas ateiam ao passado transformando-os em presente. Eles aproveitam essas cinzas como a fênix que ressurge. O presente, que eles oferecem vem principalmente do passado que não deve ser esquecido, mas, aproveitado como um presente de vida que foi moído nos fazendo entender o que se passou, numa análise pretérita. 

A face da vida 

Assim é a arte, porque vem dos homens que são a face da vida. A arte é humana, se olharmos para ela estaremos vendo um ser, o homem. (Foi assim com a arquitetura grega, ela tem proporções humanas, na verdade nos templos, proporções gigantescas, porque os deuses e suas estátuas eram enormes). Se a arte desaparece do cardápio de nossa vida diária e cai no esquecimento é uma lembrança que se apaga. É colocá-la num divã e moê-la para virar cinzas sem reaproveitá-la. Mas o que fazer com as cinzas moídas? Os psicanalistas sabem muito bem usá-las como adubo para enaltecer o presente, no canteiro de nossa horta pessoal, onde plantamos o que comer, para melhor viver. Decretamos, assim, como em nossas vidas, sua morte, talvez, ao menos um esquecimento, ora temporário ora definitivo. Assim, fazemos com nossas lembranças, se elas nos fazem sofrer, tentamos enterrá-las, contudo, teimosamente, elas reaparecem em nossos sonhos, nos perseguindo - são os nossos fantasmas. Não conseguimos nos desvencilhar por completo de nossas péssimas lembranças. 

Ao enterrarmos aquela canção que nos fazia mal em ouvi-la, estamos perdendo a chance de nos confrontar com nossos problemas. As músicas de fossa cantadas por Maysa são uma oportunidade para encarar a tristeza enterrada, mal ruminada, mal-entendida e que deve ser entendida para não aparecer num pesadelo e nos tirar o sono numa noite mal dormida. Os nossos sonhos se “vingam” de nós, e nos fazem recordar o que enterramos. Somos os nossos próprios coveiros de nossas lembranças, somos nosso senado que imputa o “Damnatio Memoriae” de nossas canções. 

A morte prematura da arte  

Impelidos pelas mídias, que são as primeiras a enterrar os hits, nos entregamos à sua vontade, e velamos aquela linda canção que ainda não era hora de partir para o túmulo, rumo ao esquecimento. Como estamos acostumados à morte prematura de nossa arte! Nossa opinião não vale mais, nem nossa vontade de perpetuar o que é bom. A vida da música pop geralmente dura apenas um ano. Esses enterros anuais nos fazem tirar o velho terno preto que não sai de moda, que nem chegou a cheirar a velho, porque é usado com frequência. A voz da arte rouca clama por mais um período, porém, a psicanálise nos avisa que o passado é atemporal. Se o que temos hoje guardados em nossos cérebros, e que estão vivos na memória, já não é mais passado, é presente, disse João Bosco de Camargo Millen, psicanalista, doutor em filosofia. Sua tese de doutorado sobre a temporalidade nos remete a uma sabedoria infinita, libertadora, pois, mistura passado e presente nos confortando. O que é angústia gerada pelo passado, na sua visão atemporal, torna-se presente para que se transforme em realidade trágica. Também, principalmente como psicanalista nos outorgou essa ideia que passado e presente estão de mãos dadas, sem uma separação clara. Por isso, não devemos apagar o passado porque é inapagável. Devemos sim, o todo tempo, cruzá-lo através do tempo, o estar lembrando e o entendendo como se fosse o presente. Como nas pranchas de Aby Warburg, comentadas em sua tese, as obras de arte se entrelaçam “rindo da separação que os estilos”, que como unidades estanques, sempre tentaram se impor como uma verdade imutável, historicamente concluída. Nessa visão, os estilos históricos se gabam por serem os únicos que respondem pela sociedade e seus anseios. 

Ao contrário, na visão de Warburg, comentada por Bosco, a renascença tem a ver com a arte grega, que tem a ver com o cubismo de Picasso. Sua tese nos abre a mente e nos faz aceitar o passado como presente. Por ser genial, o doutor da PUC-SP nos cria uma imagem e uma chance, para que a psique humana possa encarar o passado, como parte do presente, através da arte. Também como artista plástico, vê na arte um veículo que pode informar ao homem que o entendimento do passado faz parte do entendimento da vida, não como algo que se foi, mas que é atual. Concluímos, finalmente, o por quê se abandonam os estilos ou as canções. Se os apagamos, seria como apagar o passado, apagar nós mesmos, apagar nossas lembranças que são também o presente. Não devemos fugir do passado, nem o temer, pois é parte integrante de nossa “prancha da vida”, como as pranchas de Aby Warburg.

prancha

Acima, prancha de Aby Warburg

Cada ser humano tem a sua prancha, onde estão misturadas as imagens e as tragédias que passamos. Se negamos ou impomos o esquecimento de alguma obra de arte, só porque as mídias nos querem escondê-las, estaremos negando nossos profundos desejos.          

Somos nós os algozes 

A dramaturgia trágica grega ainda será melhor entendida um dia pela música pop. Já foi melhor com Cartola e Noel Rosa. Não deveríamos apagar as lembranças, mesmo porque nos perseguirão em nossos sonhos. A arte em geral, onírica pelo surrealismo, deveria ser cantada pelos poetas e menestréis modernos. Se quisermos preservar a arte e nossa música, vamos estampá-la sem o preconceito de não estar mais na moda, porque as mídias assim a condenaram. Essa é a real história do “Damnatio Memoriae” onde nós somos os condenadores. Não esqueçamos, porém, que somos nós os algozes. O esquecimento de uma canção ou um estilo artístico, ou uma obra de arte em geral, é ação “indireta” das mídias e ação “direta” nossa, porque quase todo o acervo artístico musical está disponível na internet. Se quisermos ouvir Beethoven é só procurar sua obra musical no YouTube. Se quisermos ler Goethe também estará à nossa disposição. 

A Convenção de Berna dispõe que 70 anos após o falecimento de um autor esse entra em domínio público (isso vale para Goethe). Se não acessamos através do domínio público é porque desejamos decretar o esquecimento do belo mundo da arte para nós. Talvez, toda essa argumentação encontre resposta na educação, nem tanto nas mídias. Quase toda a arte é enterrada muito rapidamente, é o fast-enterro. Somos coveiros de nosso próprio passado. Muitos se envergonham de dizer que gostam de tal estilo, por parecer “démodé” (fora de moda). No vestuário acontece o mesmo, a moda é anual, contudo, aquele terno preto que enterra os grandes estilos estará sempre na moda porque é a vestimenta do carrasco daquela linda canção que cantamos no divã.     

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

1 Comentário

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  • João Bosco Millen

    Quero parabenizar o autor Ricardo Yabrud duplamente; primeiro pela menção ao meu trabalho e segundo pelo belíssimo texto. Ricardo é sensível, inteligente e preciso na decifração da filosofia, arte (música, arquitetura, artes plásticas, dramaturgia, literatura e cinema) e a sua imensa lucidez nos faz entender melhor desses circuitos e engrenagens que permeiam a compreensão filosófica/estética. Um grande abraço querido amigo!