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Se os poetas-compositores arregaçarem as mangas da camisa, ajudarão sim a construir uma cultura mais complexa, menos cômica, mais austera, mais profunda, mais verdadeira, mais humana
> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi
A música erudita requer para o seu deleite mais profundo algum conhecimento técnico. Como na alta gastronomia, um pouco de história e a qualidade dos ingredientes que se ingere serão quesitos para uma melhor catarse gustativa. Às vezes, não comemos pelo sabor, mas pela qualidade do ingrediente. Não comemos caviar apenas pelo seu sabor, contudo, em algumas ocasiões pelo status que ele promove. Os vinhos têm essa história, inclusive aliando não só o sabor, mas as datas de fabricação. Apaixonados pelo vinho dizem que beberam uma marca safra 1957, não só pela qualidade gustativa, entretanto, porque é de uma fabricação mais antiga, rara e cara. Na música erudita, assim como na gastronomia, o status sempre esteve presente. Ouvir uma ópera, mesmo sem entendê-la, confere em quem está no teatro um status social. Nietzsche observou esse fenômeno, o do status, no festival de Bayreuth, promovido por um sonho de Richard Wagner, com o apoio do imperador. A sociedade da futura Alemanha não entendia muito do que estava sendo apresentado, contudo, elevava o status social dessa burguesia que vinha para se apresentar em trajes finos e não para entender profundamente a ópera wagneriana.
O gênero erudito e o popular estarão sempre em lados praticamente opostos. Todavia, estar disposto a se posicionar entre esses dois gêneros não é uma tarefa muito fácil, pois, dizer-se um apaixonado pela música erudita sem apreciar devidamente o que está se ouvindo poderá causar nesse falso ouvinte o mesmo que ser forçado a comer o que se detesta. Conhecemos muitas pessoas que dizem ser apaixonadas por esse gênero musical e que sabemos que elas não entendem o que estão ouvindo. A música erudita requer, infelizmente (ou felizmente), um conhecimento praticamente e quase exclusivamente da alçada dos músicos eruditos. Requer um conhecimento de harmonia profundo, um conhecimento da evolução histórica dos estilos, requer uma multi-audição, porque numa sinfonia deveremos repartir as frases musicais dos instrumentos num “continuum” que, cada vez que escutamos novamente a obra, nos damos conta de uma nova paleta de sons. A música erudita deverá ser ouvida inúmeras vezes para que se perceba toda a ideia primeva da composição. Nietzsche ouviu a ópera “Carmen”, do compositor Bizet, 20 vezes, afirmou esse filósofo no seu livro “O caso Wagner”. Com a minha experiência de ouvinte de música erudita, tenho a impressão de que não ficou totalmente satisfeito e não conseguiu entendê-la profundamente como o compositor a concebeu.
Ensino de literatura e da música deveriam
começar pelas óperas no ensino médio
Pagamos um alto preço quando decidimos nos posicionar quanto ao que gostar. Decisões que requerem muito esforço de estudo e intelectualização não são geralmente muito bem-vindas a quem não quer despender energia a interesses muito profundos. O estudo de uma ópera irá requerer, além do estudo musical orquestral, um estudo da dramaturgia porque é teatral também. Por isso, as óperas são tão difíceis de ser apresentadas pelas mídias comuns, por exemplo, pelos canais abertos. O ensino de literatura e da música deveriam começar pelas óperas no ensino médio. Apesar do sonho de uma educação de primeira linha, essa seria uma grande saída para uma sociedade mais culta. Qual o interesse de uma sociedade mais educada? Pensar é pesaroso e perigoso.
Estamos separados por uma fronteira que divide o mundo musical em duas metades: A música erudita e a música popular. Em outras épocas como na Renascença e o período Barroco essa distinção não era tão aguda, acentuada. Realmente a música de rua nesses períodos, ou canções de beber da Renascença tardia (as chansons à boire), estavam presentes como o samba de roda que é cantado nos bares hoje em dia. A complexidade da cultura musical não está na sua própria complexidade, mas se ela é servida pelas mídias ou principalmente nas escolas. Tudo dependerá do anfitrião que oferece aos convivas um bom vinho guardado com sabor de ópera ou uma outra bebida mais simples. Quem homenageia sabe muito bem o que oferecer. Se esse guarda o bom e raro vinho e não compartilha com outrem, é porque ou esconde sua sabedoria ou quer ser o único detentor do poder da intelectualização, sem disseminá-la ou reparti-la.
A grade escolar
O egoísmo está sempre fazendo adeptos quando alguém priva o próximo da sapiência. Por outro lado, a privação do saber em não ajudar outras pessoas a se informar sobre assuntos mais complexos não é obrigação do homem social privado, se bem que é uma forma de caridade, talvez a melhor caridade. Estamos acostumados a passar essa “bola”, que também seria em grande parte nossa, todavia, entendida hoje como pertencente somente aos professores do ensino público ou privado.
A grade escolar, objetivamente, é uma das principais responsáveis pela complexidade da cultura. Da complexidade da música não haverá chance de se desenvolver, se não for obrigatório o ensino de música nas escolas. Mesmo que isso aconteça, não seria possível o ensino musical com uma flauta doce, tendo no corpo discente, em sala de aula, 20 ou 30 alunos, numa dissonância que doem aos ouvidos. (É bom que se diga, para piorar, que a flauta doce requerida nas escolas, de um modo geral, tem dedilhado alemão, o que é um atraso na formação de flautistas doces, pois uma vez que o músico das escolas no futuro encomende uma flauta a um grande construtor e se torne concertista, ele receberá uma flauta do construtor com dedilhado Barroco, terá então, por sua vez, que se adaptar ao novo dedilhado e passar por um novo aprendizado jogando praticamente fora o ensino que recebeu na escola). Precisamos repensar esse ensino da flauta doce de forma simplista, imediatista e comodista.
A influência da família
O ensino musical dos grandes gênios veio de um ensino privado com um professor e apenas um aluno, o discípulo. A formação de Mozart, desde a tenra infância, se deu com seu pai, o famoso violinista Leopold Mozart que dedicou integralmente seus ensinamentos para seu futuro e famoso filho. Não foi diferente com Beethoven que recebeu suas primeiras lições de seu pai, Johann. Estamos observando que entre os gênios a influência da família, ora paterna, ora materna, ou até de tios no caso de Villa-Lobos (sua tia, sem esquecer seu pai também), é o estopim para um bom começo na criação de uma mentalidade musical, filosófica e artística complexa. No meu caso, por ser um músico erudito, veio da formação primeira de meu tio, Ferdinando Toledo, a quem devo meu apetite pela música violonística. Posteriormente fui educado com mais fervor por Vicente Lima.
Queremos salientar que essa formação possa também vir de uma outra forma ou tardiamente. Grandes artistas desenvolveram seu talento já adultos. De qualquer maneira, de onde vier a ajuda para o conhecimento e uma formação mais aprofundada, sempre será bem visto aos olhos de quem deseja um povo mais culto. A cultura complexa como um quinto poder oferecerá a quem a possuir um caminho menos tortuoso e mais lúcido da vida e para a vida. Viver as sensações do mundo (as percepções estéticas) sem um “curtir” melhor seus sabores é como um ganso que é obrigado a ingerir milho, sem mastigar, apenas para que seu fígado cresça e depois o arranquem, para fazer “foie gras”, aliás, quem o comerá, será provavelmente os que apreciam a alta culinária e o comerão devagar, saboreando a excepcional iguaria. Experimentar sabores inusitados e diferentes é uma tarefa dolorosa que nos obriga a pensar, e pensar é doloroso e perigoso.
A vontade popular
Talvez, não exista o interesse em promover uma cultura tão grandiosa, tal qual aquela que Wagner e Nietzsche propuseram para a Alemanha. Onde estará o incentivo para uma cultura mais complexa? Do berço familiar ou das escolas? Ou dos amigos? A sociedade capitalista não se importará muito com a complexidade cultural, a menos que essa provoque uma propulsão para um novo mercado da cultura, aumentando o lucro desse segmento. O capitalismo não é senão uma consequência da vontade de um povo, não sendo o culpado pela cultura, mas o próprio povo que não se rebela. A vontade popular estará disseminada entre os indivíduos, cada um deveria fazer sua parte.
Com o advento das redes sociais a cultura se pulverizou e o capitalismo perdeu um pouco de sua força pela gratuidade dos acessos à cultura erudita “versus” a cultura de massa. Por outro lado, sem um “filtro” que pertencia às editoras e às mídias abertas qualquer pessoa tem acesso a qualquer manifestação das redes e canais da internet. Esse filtro pode ter sido antidemocrático, como dizia Michel Foucault, quando argumentou que existe um “tampão” que impede a “boa” cultura, estando nas mãos do quarto poder, “as mídias que controlam”. Diria que hoje, e atesto, contrariando Foucault, que a influência das mídias não tem poder “absoluto”, mas “relativo”, pois Michel faleceu antes do advento, o “Bumm” da internet.
Qualquer pessoa posta nas redes seu mundo e seu universo. Se quero colocar um livro na internet à disposição de todos, é como um passe de mágica e não necessito do interesse de nenhuma editora na minha obra. O povo hoje julga o que gosta ou não. Muitos poetas emergentes têm um alto posto e uma grande projeção no mercado literário, via internet. O que era impossível se torna possível. Não foi com essa frase, a intenção que Shelling demonstrou o conceito de arte: “a arte torna o impossível, possível”. Mas se estivesse entre nós hoje observaria esse fenômeno democrático como uma chance para “todos” e não uma “peneira” que algum “staff” intelectual outorga.
Procurando por um “tutor”
Nesse sentido, a complexidade da cultura em todo seu espectro, tanto musical, quanto artístico em geral, está boiando como um “sargaço”, no mar das redes sociais e na internet de um modo geral. Mas quem é o responsável por incutir na mente de nossos jovens a necessidade ou não de uma cultura mais complexa? Na verdade, essa objetivação do crescimento cultural pessoal humano poderia estar sendo desejado no sentido inverso, ou seja, do “recrudescimento intelectual”, um retrocesso, que seria o de negar a erudição com todo o seu arsenal e munição para proteger a vida de enganos científicos, ontológicos, psicológicos e até religiosos. Contudo, se nosso rumo é o de uma progressão a uma exponencialização da cultura “ad infinitum”, deveríamos procurar por esse “tutor”, responsável pelo destino de toda a criatura humana.
O primeiro tutor de D. Pedro II foi José Bonifácio, o de Nero foi Sêneca, que mesmo assim, com os ensinamentos do grande filósofo, foi considerado um tirano posteriormente, apesar de sua educação democrática. Aliás, o próprio aluno Nero condenou seu professor à morte. O que será que Sêneca ensinou para Nero para criar uma personalidade tão esquisita? A procura pelo benfeitor que ajudará o homem é uma pergunta quase impossível de responder. No entanto, o caminho de um bem intelectual, apesar de oferecido gratuitamente na internet, terá desvios de amigos, de parentes, de pais e até de algumas instituições. Por ser muito lato, vago, a “responsabilidade” dos acessos aos sites será sempre, em última instância, da competência do ser que se entrega àquele conhecimento ou àquela procura - é como andar em uma floresta perigosa.
Modelar o gosto ou o apetite intelectual de alguém, dizendo faça isso, não leia aquilo, num primeiro momento, soa como um ato “despótico”. Mas existirá essa déspota que nos obriga por algum meio nos agrilhoar a algum conhecimento que momentaneamente não temos interesse? Por que nossos adolescentes têm que saber a composição química do solo de marte, ou mergulhar no mundo da física e calcular a trajetória de móveis? O que se dirá então de os obrigar a estudar a filosofia de Thomas de Aquino, ou Agostinho de Hipona ou de Descartes? Talvez gostem de Nietzsche por estar na moda. Esse autor os deixa livres para sorverem a vida dionisíaca que tanto procuram.
“Conhecimento cômico”
Hoje vivemos o “conhecimento cômico”. O que será? Estamos sempre observando os “posts” que são colocados nas redes numa ótica do risível. Não se encara a arte ou a política ou a filosofia com seriedade. Estamos passando pelo mesmo declínio que sofreu o período áureo da tragédia grega com Esquilo e Sófocles, onde a tragédia grega se transformou em comédia ática. Essa nova comédia invadiu o teatro grego, por exemplo com Aristófanes, que escreveu “As nuvens” que achincalhou, debochou de um dos maiores filósofos da história, Sócrates. Não é diferente hoje. Não encaramos a vida com seriedade, mas como brincadeira, é o “conhecimento cômico” que passa de mão em mão, de geração em geração. A vida é uma coisa muito séria. Como dizia Guimarães Rosa: “viver é perigoso”. Expandiria o conceito do nobre literato dizendo: “viver buscando a erudição é mais perigoso ainda”. É muito comum encontrar títulos de livros de matemática assim: “Aprender brincando”. Tudo é festa, gozação, achincalhe.
Não posso ouvir, não consigo ouvir uma sinfonia porque ela não tem letra de canção. A letra que pensam salvar a música hoje, de uma maneira geral, quase sempre possui a mensagem do: adultério, brincadeira, zoação, palhaçada, bebedeira e coisas do tipo. As letras de protesto de uma geração passada que propuseram e impulsionaram a democracia teriam hoje um palco cheio de aspirações e motivos.
Onde estarão nossos poetas compositores? A democracia deve ser cantada. Não está sendo cantada porque é complexa e não vende. Pensar é pesaroso e perigoso. O pensar pesa como uma grande pedra que pensamos não poder mover, mas ela se moverá com grande esforço se quisermos ter um futuro melhor para nossos filhos e amigos. As vozes de uma sociedade vêm dos poetas compositores onde as letras das músicas impregnam as mentes e mudam os costumes. Se a música é capenga e menestréica, com harmonia e melodias pobres, que pelo menos carregue uma letra ousada para conscientizar o povo de mudanças para o “bem”. Os tutores que têm essa missão de conscientizar a necessidade de uma cultura mais complexa estarão, sim, na mão dos professores, da família, dos verdadeiros amigos que desejam uma sociedade justa e feliz; principalmente dos poetas-compositores que pela música verterão rios de esperança e justiça social através de suas linhas versos. Se eles arregaçarem as mangas da camisa, ajudarão sim a construir uma cultura mais complexa, menos cômica, mais austera, mais profunda, mais verdadeira, mais humana.