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A catarse e emoção que a música provoca não é o mesmo que a contemplação de seu código escrito
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A estrutura dos códigos
Quando lemos um livro, uma obra literária, apreciamos sua concordância, quesitos do estilo do autor. Notadamente, ele não escreve como fala, pois a linguagem que usa, mesmo não sendo acentuadamente formal, cria nesta informalidade uma formalidade que é seu estilo. Como comentou Umberto: certos autores constroem seus leitores. Na literatura evitam-se as corruptelas, a não ser que façam parte de um diálogo. Dentro do universo da literatura poderá se notar ao ler um texto uma visão e entendimento microscópico que é onde estão as nuances da personalidade artística de quem escreve.
Ao reler um autor ou fazer um estudo aprofundado de um texto descobriremos um tesouro que só uma análise meticulosa descortinará um mundo ainda coberto. As particularidades não estarão só na emoção dos textos, entretanto, principalmente na construção do mesmo, que revela em cada escritor esse estilo que só é compreendido após uma aproximação contínua. O acompanhamento dos escritos de um poeta e sua carreira fazem do leitor que o segue um indivíduo cada vez mais próximo do entendimento do próprio poeta.
Conhecer é assim, vão se afinando as ideias, onde o outro que escreve vai tornando quem lê semelhante a ele. Porém, só com o tempo através da palavra escrita é que nos damos conta das denotações e intenções do estilo do escritor. Essa simbiose e construção da consciência do “novo leitor” se dá porque a “escrita” do livro permite visões e análises onde o registro escrito das palavras está sendo apresentado de forma imóvel. Se estivéssemos escutando um conto na forma de oralidade, falada ou declamada, como um discurso contínuo, não teríamos tempo de analisar efetivamente a completude de uma obra. Só o olhar da forma escrita fixa, atemporal, é que podemos fazer a análise das estruturas gramaticais, como as orações coordenadas, por exemplo, analisar os adjetivos, os substantivos, com calma e analisando o texto que está diante de nossos olhos.
Em suma, saborear a “estrutura” da língua, tal qual a escrita nos permite ver sua estrutura, por ser oferecida de “forma imóvel” (impressa, ou em imagem virtual), nos outorga uma análise mediante um congelamento na investigação do texto.
Na música acontece o mesmo, pois uma partitura escrita por um compositor revela, quando analisada, também um universo microscópico. Esse mundo pode ser o que não se ouve, tal qual, na oralidade da língua falada nas ruas, onde não há tempo de uma visão para uma análise meticulosa. As sinfonias guardam um conteúdo em que a música fica “obscurecida” pela quantidade de sons simultâneos vindos dos diversos instrumentos tocados pela orquestra. Só com uma infinidade de vezes é que nós nos daremos conta da beleza de uma obra. Nietzsche ouviu a ópera “Carmem” do compositor Bizet vinte vezes (essa verdade está relatada pelo autor na sua obra, “O caso Wagner”). Se mesmo Nietzsche com suas qualidades obrigou-se a ouvir essa enorme quantidade de vezes, apesar de sua habilidade para ler partituras, sendo principalmente um grande músico, o que se dirá de um pobre ouvinte que pleiteia ouvir “Carmem”? Quanto mais distante estiver a sociedade do poder de conhecimento da linguagem musical, mais distante estará da grande música e da filosofia trágica proposta por Nietzsche.
A sociedade perde a chance de se aproximar da música verdadeira, aquela que está escrita na pauta. Quem deseja ser poliglota poderia não buscar mais uma nova língua, mas trocá-la pelo aprendizado da leitura musical que é universal. Acho inclusive que esse seria o papel das escolas e da grade escolar. Não digo aqui tocar um instrumento, mas ler “partitura” como se diz comumente. Tocar um instrumento é consequência de saber ler. Tocar sem ler talvez seja inconsequência, pois não se entenderá profundamente o que se “toca de ouvido” porque o universo da escrita musical revela um outro mundo, o mundo da composição, da “sintaxe”, da “semiologia musical”, da verdadeira música como “código” escrito. Os códigos a partir de sua escrita transformaram-se em um conjunto semiótico e através de uma ciência interna se revelaram como que, talvez, criando asas para novas composições. Se tornaram, a partir dessa visão semiótica, uma metalinguagem, com uma nova forma de entendimento do discurso artístico.
Desobedecendo as regras
Tanto na linguagem escrita que representa a fala quanto a linguagem escrita musical revelarão um mundo tal qual a matemática nos revela em seus cálculos. As sentenças escritas principalmente na poesia nos fazem calcular o que foi dito através de fórmulas, pois a princípio não fazendo muito sentido, porque fogem aos cânones, nos forçam a recalcular um sentido novo da criação literária poética. Às vezes suprimem-se os artigos e até os verbos na poesia, para que se desobedeça as regras intencionalmente, criando a ambiguidade. O que estava prescrito como regra e lei gramatical, por exemplo, cai por terra na criação poética. A poesia nos traz uma imagem literária que às vezes vai contra leis internas da linguagem, como por exemplo, na física que vê um corpo cair para cima, que é contra as leis gravitacionais descobertas por Isaac Newton.
Na música também existem leis promulgadas pelos estilos e pelas sociedades. Houve um tempo em que se proibiu na composição o uso de quintas paralelas na música, contudo, posteriormente, foi largamente usado nas composições, principalmente da música espanhola do século XX, nas obras violonísticas, por exemplo, e nas obras para piano de Isaac Albéniz e Enrique Granados. Algumas delas foram transcritas para violão, inclusive pelo próprio Francisco Tárrega, um dos maiores compositores para “guitarra” do século XIX.
Na música como na literatura encontraremos uma sintaxe que lhes são próprias. A semiologia, a semiótica, estudam as duas formas, tanto a literária quanto a musical como uma semântica. Quando possuímos em mãos, tanto a poesia quanto a música, ao lermos seus códigos escritos, garantimos o poder de congelar o tempo e saborear os significados, diferentemente, como por exemplo, quando a língua degusta os alimentos, pois essa derrete principalmente os sabores doces imediatamente pela amilase, expelida pelas glândulas que fazem parte do complexo da gustação.
O “congelamento do entendimento”, pela visão que enxerga tanto a poesia, a literatura, de um modo geral, como a música, nos faz mergulhar num “espaço-tempo” diferente das performances musicais. Porque essas devem manter o ritmo e o “andamento” das obras musicais. Descobre-se também ao ler uma partitura uma “estrutura” harmônica que não será percebida se ouvirmos uma obra num concerto, especialmente se ela possuir um andamento rápido como os “alegros”, os “prestos”. Contudo, numa imagem de uma “grade”, ou seja, uma partitura de orquestra, iremos visualizar não só os sons, mas uma tela, tal qual a pintura, e enxergar uma estrutura que está ausente numa audição pura e simples.
A visão da estrutura escrita
Esta é a verdadeira visão de uma leitura e escrita musicais, pois mantém a mesma estrutura das línguas em detrimento do ouvir de forma banal e desconhecimento profundo, que acontecem com os leigos ouvintes que imaginam o mundo da música como o mundo dos sons e nada mais, esquecendo-se que a escrita musical irá infundir um novo capitulo no entendimento da música, porque a partir da sua codificação ela cria asas e terá que ser vista como um código estrutural e não como “diletantismo emocional” imediato.
A catarse e emoção que a música provoca não é o mesmo que a contemplação de seu código escrito. Na física, por exemplo, o mundo real e o mundo quântico são expressos pela linguagem matemática. Observamos nas fórmulas o que os olhos não veem. Assim o é na escrita musical, o que está escrito os olhos e o cérebro veem “o que o ouvido não ouve” absolutamente. Essa surdez é nitidamente observada quando no “congelamento do olhar” para a pauta nos detemos numa harmonia, uma sobreposição de notas que devem ser tocadas simultaneamente, que o ouvido poderá não notar, mas está lá nitidamente escrito e “visível” como um código semiótico potencialmente ativo.
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