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Brasil! A cara do samba. Esse gênero musical tem no seu ritmo, talvez até dionisíaco, por excelência, uma semelhança onde pode nos remontar e nos admite fazer analogias em relação às celebrações religiosas gregas de rua. Estas deram origem às grandes dionisíacas (os festivais onde havia concursos das peças do antigo teatro trágico grego).
(Fotos: Reprodução/Internet)
O “ritmo”, o foco desse artigo, é uma particularidade da musicalidade de Dioniso que era o Deus cultuado por essas celebrações e festas de rua. Théodore Reinach, em sua obra “A música grega”, comenta sobre os instrumentos de percussão usados na antiga Grécia, nos cultos a Dioniso. Todos eles eram muito parecidos com os nossos, usados pelas escolas de samba. Comenta: “Eles encontravam seu principal emprego em certos ritos orgiásticos de providencia oriental. Limito-me a citar os barulhentos tamborins e os estridentes címbalos... os sistros, dedicados a Isis, espécie de matracas, e, enfim, as castanhetas, com ou sem guizos, manuseadas pelas cabareteiras, sírias ou dançarinas gaditanas, voluptuosas ancestrais de nossas Carmens...”. Não foi à toa que Nietzsche assistiu a opera Carmen (de Bizet) vinte vezes, pois esta espelhava o que o filósofo propunha como a arte total, numa visão dionisíaca do mundo. Em toda a cultura oriental, seja ela árabe ou hindu (onde peregrinou Dioniso), e outras, os ritmos prevaleceram, porque a dança, amiga inseparável do ritmo, clamou e clama pelos movimentos corporais. Sendo esse culto de origem primordialmente percussiva, os batuques incitam no corpo um desejo para que estes se movimentem, principalmente no baixo ventre, região escolhida pelas dançarinas orientais árabes. Herodes Antipas no dia de seu aniversário foi fisgado pelos movimentos libidinosos, porém, fisiologicamente fortuitos de Salomé, filha de Herodias. Como presente por inigualável performance orquesográfica lhe prometeu uma recompensa. Orientada pelo desejo de vingança de sua mãe, pediu a cabeça do profeta João Batista que estava já na prisão. O poder da dança, principalmente das orientais, que com movimentos livres corporais, persuadindo os espectadores com extrema lascívia, arrancam deles olhares desejosos, quando não prometem até a metade de seu reino, como pretensamente prometia Herodes à Salomé. Os movimentos corporais excitados pelos ritmos percussivos dionisíacos calam o logos, o libreto, (o apolíneo) que numa visão e entendimento socráticos paralisam o corpo, dando lugar a elucubrações racionais e intelectuais.
Uma analogia que não pode calar vislumbra o paralelo que poderá existir entre o samba e o coro ditirâmbico, (na sua expressão musical mais elaborada das tragédias gregas). Esse coro cantava produzindo melodias e harmonias com um ritmo variado especial. Ele era considerado por Nietzsche a suma importância para o entendimento destas, porque era em sua manifestação musical, que este comentava o espetáculo (a tragédia), expressando através da música, o real sentimento trágico (o que realmente importava em sua opinião). Não foi à toa que seu primeiro trabalho publicado, intitula-se: “O nascimento da tragédia, a partir do espírito da música (ou na origem da música)”.
Vale salientar e fazer um parágrafo, fazendo referência à segunda parte do título de sua obra, “no espírito da música” que geralmente é desprezado, sendo considerado supérfluo por muitos editores colocando apenas o título: “Nascimento da tragédia”. O “no espírito da música” também não faz parte dos comentários por muitos filósofos acadêmicos. Estes tentam explicar a teoria nietzschiana quanto ao dionisíaco pelo texto (libreto), quando na verdade Nietzsche descobriu a verdadeira importância da música nas tragédias, quando proferiu uma conferência sobre este assunto, “O drama musical grego”. A importância que Nietzsche viu na música com o foco nas tragédias não era apenas uma curiosidade, mas uma obstinação e um amor profundo por essa arte. Ele foi um excelente compositor.
Acima, composições para piano de Nietzsche
O título original da obra em alemão não despreza o título original, mas o evidencia, pois se consuma no final da frase: “No espírito da música” e não, por exemplo, na origem do texto, ou na origem do mito, etc. O termo alemão “geiste” significa “espírito” e não “origem” como em algumas traduções do título original. Todavia, a palavra espírito nos remete a alma que sente o êxtase que a tragédia mostra e que o samba irá retomar e repetir.
Acima, imagem do frontispício da obra de Nietzsche, em alemão: “Nascimento da tragédia, no espírito da música”
O espírito da música é o ritmo
Por que devemos considerar aqui o espírito da música na qual o ritmo está grandiosamente inserido? Tal analogia, entre a música da tragédia e o samba irá nos fornecer a resposta não para a beleza deste último com seu ritmo apenas, mas porque este provoca nos indivíduos, praticamente o mesmo êxtase que sentiam os gregos ao sentar naquele anfiteatro que cabiam vinte mil pessoas.
Nas celebrações carnavalescas, o mesmo se constata. A grande massa pulsante no carnaval é refém desse ritmo contagiante. A plateia grega, já afirmava Nietzsche: “a massa se reduzia a apenas um indivíduo”. Quando o coro cantava e ritmava a música que ouviam, todos os ouvintes se transformavam no que ele chamou de uno-primordial. É bom que se diga que estamos considerando aqui, tanto os sambas agitados, frenéticos e os melancólicos, de dor e sofrimento. Na música da tragédia, ritmos agitados e calmos faziam parte da obra teatral.
Toda a sabedoria musical desenvolvida pelos gregos, inicialmente vinda dos aedos (cantadores acompanhados de um instrumento desde os tempos de Homero) numa primitiva e lenta musicalidade, desaguou no mundo ditirâmbico da tragédia grega, seu apogeu. A analogia que podemos fazer entre o samba, (excessivamente ritmado) e os ritmos dionisíacos, nos outorgam a importância do laureamento dessa forma musical. Se o ritmo do samba é uma espécie de análogo à musica grega da tragédia, quanto ao êxtase que provoca no indivíduo e na plateia que se transmuta no uno-primordial, como afirmou Nietzsche em suas conferências, então, entenderemos melhor o “fenômeno” dos ritmos do samba. Estamos falando, principalmente, da bateria das escolas que desfilam e dos batuques dos blocos de carnaval.
O ritmo é a alma e espírito da música
O ritmo é a alma, o espírito de uma música depende dele. Sem ele, ela se torna apenas uma melodia associada a uma harmonia. Mesmo assim, ao contrário de composições aparentemente sem ritmos escritos, por exemplo, no caso de um prelúdio “non mesuré” de Louis Couperin, por exemplo, que não assinala o valor das figuras das notas (colcheias, mínimas etc.), exigindo um ritmo a ser respeitado pela vontade do compositor, ao tocarmos estaremos criando um ritmo inusitado, talvez nunca mais repetido na sua integra, mas de maneira nenhuma estaríamos tocando sem ritmo. É impossível não ritmar.
A expressão “non mesure” quer dizer “sem medida”. Cada interprete escolherá o tempo de cada nota (a única informação da partitura) destes referidos prelúdios. Tanto é assim, que geralmente foram escritos apenas com as figuras “semi-breves” como mostra o vídeo. Visto isso, podemos afirmar que não há escolha, mesmo nesta situação extrema, que a música sem ritmo não existirá, pois como afirmamos, ele é sua alma. Sendo alma, todos os povos admitiram e admitirão o ritmo como a “essência musical humana”. Não estamos aqui descartando a importância da melodia e da harmonia, mas são importâncias em outros sentidos e de outras formas muito complexas.
O ritmo do samba, então, seria uma espécie de alma da música brasileira. Na sua pureza rítmica encontraria no interior do homem uma chama eterna. Da mesma maneira que as celebrações de rua, à Dioniso, na Grécia antiga, também na expressão brasileira o é em verdade. Cada povo procura no ritmo sua expressão mais forte e mais verdadeira. O ethos (expressão da cultura de um povo) é o resultado das miscigenações desses ou sua manutenção. O samba multifacetado deu origem a inúmeros outros filhos: o choro (chorinho), o partido alto, o atual pagode e o samba enredo que é o foco desse artigo (pelo lado rítmico) e que são dependentes da idéia rítmica do samba primordial.
O contágio pelo êxtase do ritmo
O samba representado pelos seus instrumentos de percussão na bateria de uma escola de samba ganha status e principalmente grandiosidade rítmica. Ao ouvir e se estremecer com uma bateria enorme, de um desfile carnavalesco, não há como não se contagiar com a sua pulsação, seu ritmo.
Até mesmo os mais indiferentes indivíduos tocados pelo ritmo do samba, batem com o pé no chão marcando o compasso. Estes também principiam a possibilidade de um “tímido” movimento corporal. O ritmo invade o peito dos ouvintes sem pedir permissão, pois os ouvidos estão sempre à mercê dos eventos sonoros. O maracanã (instrumento de percussão, o surdão) incomoda os ritmos cardíacos, pois estão ambos descompassados, um em referência ao outro quando misturados na audição da apresentação de uma bateria. Este mesmo êxtase que o ritmo das baterias das escolas de samba outorga aos seus ouvintes poderiam ter sido o mesmo êxtase provocado na euforia dos desfiles em homenagem a Dioniso. O ritmo quando provoca o corpo e o força a dançar, faz, consequentemente, o intelecto socrático esquecer da razão. O corpo num ato reflexo responde fisiologicamente sacudindo os pés, embaralhando os passos sem que precisássemos nos deslocar a algum lugar. Sambar, quando é usado como um verbo que significa dançar, requebrar ao ritmo de uma bateria: é o movimento desnecessário, não utilitário como um fim para a manutenção da vida. Esse êxtase fortuito que nos acomete se assemelharia a uma sucessão de “choques” elétricos no corpo (nada mais justo, pois o ritmo é um atributo de Dioniso, e este era filho de Zeus, o deus que personificava o raio).
A resposta humana ao ritmo não é culpável
Nietzsche sempre pautou que a vida deveria ser vivida num âmbito mais fisiológico. A vida muito pensada e muito “calculada” pode nos levar a conflitos interiores, pois argumentou que a culpa por algum erro, sempre é justificada “por um erro de cálculo”, disse esse filósofo. Ora, a própria dança do samba, seu batuque, não nos pode levar a uma culpa porque é uma manifestação fortuita do corpo sem fins libidinosos, a não ser que o indivíduo use o intelecto em prol de uma vantagem que não tem nada a ver com a resposta fisiológica do corpo. O caso de Salomé pode nos levar a duas conclusões. Ou ela pensou em seduzir Herodes e levar vantagem para sua mãe, ou Herodes ficou tocado pelos movimentos fortuitos do corpo de Salomé. Se a música a levou a um êxtase dionisíaco foi então só uma manifestação do corpo frente a um ritmo que vem de fora e a fez movimentar os membros e o tronco sem nenhuma razão. É bom evidenciarmos que a vestimenta contribui para um mau juízo da dança. Dançar é uma coisa. Estar dançando nu é outra coisa. Quando uma porta bandeira e o mestre sala dançam olhamos para a arte da dança, pois ambos estão vestidos. É bem provável que Salomé estivesse usando uma roupa provocativa, ou não. Existe a possibilidade de Herodes ter se encantado com a dança de sua enteada com um olhar estético-artístico. Seria a melhor forma de entender a observação do êxtase dionisíaco no indivíduo acometido pelos ritmos. O sambar em seu estado puro, extático, dionisíaco, é, definitivamente sem razão, sem conflito, apenas um ato fisiológico que liberta o corpo do intelecto que está sempre nos afligindo com preocupações principalmente existenciais. Não há como sambar e filosofar ao mesmo tempo. A catarse estética, por excelência, vem por várias vias. A pintura vem pelo sentido da visão. A música entra pelos ouvidos, contudo, o corpo ao ouvir a bateria de uma escola de samba, responde se movimentando porque a catarse não é de espanto, ou melhor, “maravilhamento” (o “thauma”), mas uma resposta “duradoura”, dinâmica e que permanece até que cesse e se silencie o ritmo.
Quanto mais a sociedade evolui intelectualmente e filosoficamente, mais estará ligada ao corpo, pois a influenciadora filosofia Nietzschiana, pelo menos até hoje, explicou a necessidade de nos comportarmos fisiologicamente. A razão respeitaria a vez de quando o corpo deve se manter sadio para o próprio “bem” do intelecto. Privar o homem de uma catarse inata é fazê-lo infeliz porque o sente sem que possa reagir. Não nos esqueçamos, contudo, que também o rock também provoca essa espécie de frenesi e êxtase catártico. Não foi à toa que criou adeptos por todo o mundo, inclusive no Japão, e que este gênero musical, o rock, nunca esteve incluído em seu ethos (sua cultura).
O samba tem ares tropicais. No balançar do corpo uma grande energia térmica é liberada. Sambar vestindo um terno de lã não será muito agradável podendo levar o acometido por este ritmo a uma hipertermia. Por isso, as fantasias possuem menos vestimentas. O ato de usar menos roupa quando no ato da dança do samba não é critério para o juízo deste movimento corporal. Esse artigo não analisa o pudor, contudo, apenas o êxtase provocado pelo ritmo do samba. As roupas gregas nos desfiles em homenagem a Dioniso eram muito frescas. O ar de primavera em que as festas religiosas aconteciam não clamava pela nudez, mas pelo êxtase corporal que um dia seria esquecido com o racionalismo socrático.
O coração pulsa como a bateria das escolas de samba
O ritmo do samba, audaz, cronometricamente preciso assemelha-se ao ritmo cardíaco de um indivíduo são. Quando há um desajuste nesse ritmo do coração, a disritmia deverá ser sanada, assim como uma bateria de escola de samba deverá ser corrigida no seu ritmo pelos músicos percussionistas. O coração é um órgão que necessita de um ritmo constante. A vida sadia necessita de um ritmo cardíaco musical, preciso, sem alterações. Nesse sentido o ritmo do samba, com sua percussividade, assemelha-se ao pulsar deste órgão. Nota-se aqui uma semelhança fisiológica-musical e que atesta a afirmação de Nietzsche quanto à salubridade, tanto de uma forma artística musical quanto da saúde cardíaca e imprescindível da vida humana. Sambar faz bem à saúde!
O ritmo, essa alma musical eterna
As celebrações humanas são importantes para conhecermos a sensibilidade de cada etnia. O ritmo do samba sempre calará comentários de extrema intelectualidade quanto ao olhar erudito. Villa Lobos foi nosso grande entusiasta, propagador e disseminador do nosso ethos musical pelo mundo (principalmente na França onde se editaram suas obras e não no Brasil), era praticante do gênero conhecido como “chorinho”.
Esta modalidade musical é filho legítimo do samba. As manifestações culturais são o combustível para grandes obras eruditas que são o espelho da vontade de um povo. Os aedos (cantadores gregos), como os trovadores medievais, cantavam suas estórias e histórias. Dramaturgos como Ésquilo e Sófocles repaginaram suas antigas melodias e harmonias, refinando-as. A música grega sempre foi acompanhada do ritmo, sua alma.
Acima, música grega antiga
Villa-Lobos fez o mesmo. Contudo, estes dramaturgos gregos não mudaram a “alma” da música, o ritmo. Este permaneceu indelével. Os compositores gregos e os atuais mudaram a harmonia e as melodias, sinuosamente bem articuladas. Contrariamente, estes não se atreveram a alterar os “ritmos” populares, sua fonte folclórica e de tradição. Estes são inertes, ontológicos, falam da própria vontade, e são ela própria, como afirmou Schopenhauer.
Não há como escapar do frenesi do ritmo de uma bateria de escola de samba. Não há como se manter quieto, imóvel. O sangue ferve, os pés se agitam, tudo se esquece. Um torpor invade a alma. Esta inquieta-se para o bem do corpo. Dioniso vence Apolo com seu ritmo alucinante, vence o libreto, a ação, o “dran”. O que importa agora é o estado extático, êxtase do ritmo das baterias. Dioniso ergue sua taça de vinho, nós os copos de cerveja em comemoração à vida que transborda mais que o líquido das uvas, mais que a levedura da cevada. Depois do torpor, só restam as cinzas, a sobra de uma libação dos corpos carbonizados pelo fervor do ritmo do samba! Do interior das cinzas de sua mãe Sêmele, Zeus encontra Dionísio, um feto, o início do ritmo primitivo humano, a batida de seu coração indica que ele está vivo e o costura em sua coxa. Dioniso imita as batidas de seu coração com o ritmo que viria a disseminar, ele o acelera. O ritmo do samba, filho tardio de Dioniso, desfila pela avenida e só termina na quarta-feira (de cinzas) para ressurgir como a fênix no novo carnaval que virá estremecer com o surdão, o trovão, a sonoridade do raio de Zeus, sua verdadeira imagem, a imagem do samba e do batuque tropical.
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