(Foto Ilustrativa)
A máscara veneziana esconde a face não reconhecível, mas não esconde os desejos
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O carnaval de Veneza acontece nos palácios. Os canais recolhem as lágrimas das mulheres apaixonadas pelos mascarados. Os gondoleiros ouvem as risadas e as silhuetas pelas janelas - são sombras não identificáveis. O baile começa! A música veneziana estronda. A suave dança convida os galanteios gentis. É hora de dançar a dança generosa, de poucos batuques e mais harmonia, melodias sinuosas. O ritmo de Dioniso está afastado, só Apolo se apresenta na música de câmara. Os violinos gracejam, as violas serpenteiam no ripieno, o violoncelo ruge. A música é suave, mas Dioniso rompe a porta e se apresenta como o deus do vinho. A bebedeira alegra os presentes, se generaliza e convida o beijo a fazer parte da festa. Como beijar quem não conheço?
Estão todos mascarados! É a máscara do carnaval e não a do confinamento. A máscara veneziana é a máscara dos olhos. A máscara que se usa na boca e no nariz, bloqueia o amor. Esse amor bloqueado é o que se nutre do beijo violento, aquele que rasga e o que une bocas mudas, onde a língua fala o idioma secreto de Afrodite. A face escondida pela máscara dos olhos faz o convite dionisíaco. A boca escondida pela máscara inferior evita o convite de Tânato, a personificação da morte. A música embriaga mais que o vinho, por isso é dionisíaca, faz esquecer o perigo vital. É a embriaguez de um êxtase que Nietzsche vislumbrou.
Beijo, logo amo
Há tempos, em que se deve permanecer quieto, na mudez, com a máscara que embaça o som. Por enquanto, não entendemos com clareza o canto. Porém, há tempos em que se deve cantar, louvar, beijar, colar, respirar um outro ser para nos certificarmos que nossa existência não é cartesiana. O “Penso, logo existo”, isola o homem em seu mundo interior. “Beijo, logo amo”, soa mais humano, porque a existência do amor se justifica no outro ser. O título de uma obra de Nietzsche, “Humano demasiado humano”, revela o demasiado, em estar supraelevado nos sentimentos. A máscara veneziana esconde a face não reconhecível, mas não esconde os desejos.
A máscara da boca faz sublimar os desejos e afastar os homens do amor. Tudo começa no carnaval veneziano. Veneza é só um lugar da máscara, de fantasia e analogia, que esconde no seu carnaval, os nossos olhos chorosos, embaçados, para que não vejamos o Palácio Ducal, do doge, onde acontece a festa. Lá fora, a Praça de São Marcos acolhe os pombos em revoada, que anunciam uma paz vindoura, para apagar os tempos difíceis que passamos.
Amor universal
A máscara bucal subirá às alturas mais divinas para encontrar os olhos em lágrimas, necessitados de amor. A música salvadora e santa, porém, te fará entrar em êxtase. A boca liberta cantará a mais linda canção de amor, uma música divina de agradecimento, uma “Ode a Santa Cecília”. Um milagre atravessará o coração da humanidade para salvá-la. Trespassará à espada, num golpe mortal, a indigência; a pobreza da falta de calor humano. Os corações partidos voltarão a se unir pela cola do amor universal.
A música é a “harmonia mundi”, uma força central de aglutinação, junção, na formação da terra. A boca livre da máscara, na voz do coro da “Ode a Santa Cecília”, cantará na sua liberdade a música salvadora, no nono e no último movimento, da obra de Handel:
Abaixo o poema de John Dryden, adaptado por Handel na “Ode para o dia de Santa Cecília”. (Santa Cecília é a padroeira universal dos músicos)
“Mas, oh! O que a arte pode ensinar?
Que voz humana pode alcançar
O louvor do órgão sagrado?
Notas inspiradoras de amor santo,
Notas que voam em seus caminhos celestiais
Para se juntar aos coros acima.
A partir do poder dos planos sagrados
As esferas começaram a se mover
E cantaram os grandes louvores do Criador
A todos os que foram abençoados acima;
Assim, quando a última e terrível hora
devorar este desfile em ruínas,
a trombeta será ouvida no alto,
os mortos viverão, os vivos morrerão,
e a música desafinará o céu”.