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Aglutinar um monte de notas, enfileirá-las na sequência do tempo, empoleirar uma nota em cima da outra, para que esta espie o outro compasso adiante, por cima de um muro, para ver se o acorde na sequência ou sua melodia é mais bela, como numa competição: eis a beleza da música! A inveja musical de seu interior é uma competição entre as frases musicais, pois uma diz para a outra:
- Eu sou mais bela!
O acorde cheio de robustez e ousadia também resmunga:
- Não tolero essas terças raquíticas.
A serpente melódica que navega a linha do soprano se gaba:
- Sou o “cantus firmus”.
O tenor, por sua vez, pede o direito de sê-lo. No entanto, a polifonia arranjada de Guillame Dufay:
E mais à frente de Gesualdo...
...Irão embaralhar as cartas que a “Ars Antiqua” propôs como jogo musical. A melodia se perde e o ouvinte se confunde. Será preciso ouvidos delicados. Mesmo na época da invenção da polifonia ocidental, ainda na doce mediania dia da Idade Média, Johannes de Grocheio, aproximadamente nos anos 1300, disse sobre a nova música que despontava naquele momento a “Ars Nova” (Arte Nova): “Não deve ser executada na presença de pessoas comuns, pois ninguém notaria suas ‘sutilezas’ ou gostaria de ouvi-las, mas deve ser interpretado na presença de pessoas educadas e amantes das sutilezas da arte”.
Os ecos resultantes que percorreriam mais de 700 anos ainda incomodam a crítica estética musical de hoje. Crítica aqui é usada no sentido de juízo. É comum também que o historiador desatento pense que a Idade Média foi a sepultura da arte, que anda explicando ainda corriqueiramente em algumas salas de aula, para os tenros jovens, que lá habitou a Idade das Trevas. A Idade Média com a “Ars Antiqua” e a “Ars Nova” promoveram o primeiro impulso para o desenvolvimento da nova música. Pensa-se, comumente, que a música medieval se resumia no Canto Gregoriano litúrgico. Enganam-se os que pensam assim, todavia, o profano pegou carona na invenção da nova escrita com Guido d´Arezzo, um monge italiano, nasceu em 992, morreu em 1050, período em que despontou a “Ars Antiqua” (arte antiga). No período que se sucedeu, com a “Ars Nova”, culminaria Guillame Dufay com sua obra enigmática.
A música de boa qualidade sempre perseguiu os ouvidos de ouro, delicados, sombrios, que procuravam as órbitas celestes na harmonia das esferas de Platão. A sutileza que nos fala Johannes de Grocheio ainda é um enigma e uma precaução para que ouçamos o que algumas pessoas dizem: “Não suporto essa música complicada, estranha e complexa demais”. A música erudita se afasta cada vez mais do grande público porque ainda persegue a vanguarda da Idade Média, com a “Ars Nova”, ainda não descoberta pela maioria dos educadores historiadores, que a acusam por ter feito parte da Idade das Trevas, para eles: a sepultura da arte. Devemos ser sutis e buscar informações corretas. Não devemos ouvir falsos comentários de quem não percebe o que está ouvindo. Grocheio, lá nos anos 1300, anuncia e prescreve que não devemos oferecer iguarias musicais recheadas de sutilezas. Sutil é esconder o bombom. Sutil é esconder o Crepe Suzette. Sutil é esconder Dostoievski numa gaveta. É preciso abri-lo somente ao escurecer, na quietude da noite. É preciso esconder a boa arte dos que são contra sua sutileza. Não devemos magoá-los! Devemos retirar a cera que foi depositada nos ouvidos. A cera amarelada do mau gosto se deposita dia a dia, formando uma crosta. Ela bloqueia a arte nova, a “Ars Nova”. Quem não tiver cera nos ouvidos, que a ouça!