(Foto Ilustrativa)
O “hoquetus” percorreu toda a história da música desde a “Ars Antiqua” até nossos dias
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“Soluço” é a tradução mais próxima para a palavra latina “hoquetus”. Essa forma de composição ou expressão, é uma técnica rítmica musical que foi estabelecida embrionariamente na Idade Média, precisamente na “Ars antiqua”, entre os séculos IX e XIII. Esse artigo coloca em evidência a importância dessa técnica que trespassou toda a história da música desde a “Ars antiqua”, passando pela “Ars nova”, se aperfeiçoando, invadindo os séculos e estilos musicais posteriores, culminado em nossa época atual.
Esse soluço, o hoquetus, é o que chamaríamos do embrião da síncope musical. O soluçar como espasmo do corpo humano nunca está no tempo forte do compasso. A síncope, que é o próprio soluço, é o elemento mais versátil na música porque foge do pesado tempo marcado nas cabeças dos compassos. Ela foge dos tempos fortes aliviando o pesar. A sensação quando ouvimos a síncope é a de que não pisamos nunca no chão, mas levitamos e vamos trespassando nuvens. A síncope agrada o homem porque não conclui a frase musical enquanto está em evidência, principalmente, nas composições tonais.
A gênese
Todo o princípio dessa inicial síncope musical se deu com dois compositores que marcaram ess período, respectivamente, Leonin e Pérotin, ambos nascidos no século XII, na “Ars Antiqua”. O primeiro foi representante da Escola de Notre Dame, e que se deve o título de melhor compositor de “organa” dessa fase da música. O segundo, a Pérotin, devemos imputar o magistral contraponto, visto pela música ocidental como um dos maiores colaboradores da escrita polifônica. Desse contraponto surgiu a sombra embrionária do “hoquetus” (soluço), que iria a partir de sua criação surgir o desenvolvimento de uma grande polifonia emergente. Para percebermos a evolução histórica da música a partir do “hoquetus”, nos serviremos de inúmeros exemplos. Só assim conseguiremos entender essa evolução até os dias de hoje - através da própria música:
Desde então, uma nova vereda se afastava do caminho do canto gregoriano. A polifonia viria para mascarar o “cantus firmus” a partir do “organum”, complicando, extravasando, desaguando, se metamorfoseando no organum melismático, também chamado organum florido:
No período que viria a seguir, os compositores da “Ars nova” imbuídos dessa polifonia, finalmente realçaram esse soluço contrapontístico; disseminariam um aspecto rítmico que faria saltitar a música escrita horizontalmente que estava instalada no canto gregoriano monódico; proposto pelo papa Gregório I.
Já a nossa “Ars nova”, imprime com mais fidelidade a forma do “hoquetus”.
Inaugurou também a primeira missa composta nesses moldes. Assim, o contraponto dessa inovação despontou na forma litúrgica.
Percebemos que o contraponto, nesse soluço, a música que se segue, com o renascimento, dos séculos XV e XVI, com seu madrigal de cinco e seis vozes, estaria impregnado desse engasgo.
A própria música barroca, quatro séculos depois, associou-se a essa forma de expressão contrapontística. Bastou que ela se utilizasse dos pontos e duplo-pontos de aumento nas notas, como se fez nas composições onde encontramos os “inégalités”, largamente usados na música francesa barroca:
Tão belo espasmo está também na “Humoresque”, de Dvorak, na sua primeira parte:
O jazz também por sua vez, nesse ritmo soluçante propunha esse susto pontuado como seu progenitor, o blues, que se serviria dessa iguaria propondo esse mancar. O soluço do violão “dobro” feito de aço marca o pulsante pontuado:
Na interpretação de Eric Clapton, a mesma composição de Robert Johnson (“Rambling on my mind”):
A bossa nova propondo também uma nova modalidade percussiva no acompanhamento do violão viria incorporar esse soluço em seu ritmo. Criava-se uma síncope e uma ligadura de um ritmo para o compasso subsequente. O acompanhamento da mão direita é o “hoquetus” instrumental, também imitando um tamborim que quase sempre está em “sincope”. A nota de cabeça de compasso praticamente desaparece como um suave levitar como que fugindo de uma dura marcha:
O choro brasileiro, com seus mestres: Pixinguinha, Jacó do Bandolim, e muitos outros foram afetados por este espasmo involuntário nas noites cariocas:
Claudicante e gaguejante, em sua essência (pois Claudio, o imperador romano, era manco e gago), o soluço, iniciado na Idade Média dos séculos XI até o XIII, seria um dos pilares de toda a música que viria a seguir até os dias de hoje. Essa ideia, genialmente criada a partir de uma “irreverência”, por parte da “Ars Antiqua”, tem como causa a música pesada litúrgica. Nessa arte musical, literalmente não se digeria facilmente o mistério divino. Só foi possível digeri-la através de soluços e espasmos a partir do “organum”, que a partir do cantus firmus foi desenvolvendo uma liberdade. Pérotin a dividiu como um jogral, separando vozes para diferentes cantores, incitando a música monódica e forçando-a num aliviamento para suportar o seu pesar. De nenhuma maneira também, a mensagem e composições litúrgicas, apesar de seu peso, foram abandonadas, principalmente porque foi celebrada no marco da primeira missa em estilo fugal e contrapontístico, a missa de Guillame de Machaut.
A música litúrgica em oposição à profana que se instalou petreamente com a “Ars nova” nunca foi abandonada. As missas, os réquiens, foram manifestações religiosas musicais por toda a história da música, com Bach, Mozart e nossos contemporâneos. Mas tudo isso veio como consequência do “hoquetus”, essa invenção que se iniciou principalmente com Pérotin: não foi à toa que seu discípulo, reconhecido apenas pela alcunha de Anonymous IV, o chamou de: “Pérotin o Grande” ou “Magister Perotinus”.
Quando se ingere o maior peso em que estão envolvidos mistérios de um canto horizontal como o canto gregoriano, se faz necessário um movimento involuntário por parte de alguém que pode aliviar esse peso do sagrado e divino. “Hoquetus”, o soluço medieval foi apenas uma resposta através do “organum”, que foi a semente para o início da polifonia. Hoje estamos todos ainda soluçando aquele contraponto de Pérotin e Machaut. Achamos que a música não tem peso por ser metafísica e a consumimos até um êxtase dionisíaco de uma forma em que os gregos a consumiam, numa glutonaria exacerbada. A gula nesse êxtase fez nascer o antídoto: um esfarinhamento num soluço, como resposta à infinitude da música que não mais se sente pesar através do infinito com o “hoquetus” que percorreu toda a história da música desde a “Ars Antiqua” até nossos dias.