(Foto: Divulgação)
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Cartaz: Tema do filme é recorrente em todo o mundo porque mostra o êxodo dos jovens para os grandes centros, esvaziando o interior
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Este artigo faz alusões estéticas e considerações filosóficas a respeito dos bons conceitos roteirísticos que o cineasta Murillo Sued usou em sua mais recente produção cinematográfica. O título da película é “Turvo”. Apresenta o conflito do protagonista que pretende estudar em uma grande metrópole, mas precisará abandonar sua tradição, seus amigos e sua amada cidade. O tema do filme é recorrente em todo o mundo porque mostra o êxodo dos jovens para os grandes centros, esvaziando o interior, apagando a tradição, representada pelos laços familiares que se dissolvem, desestabilizando o corpo social das pequenas cidades. O filme nos faz refletir sobre a gravíssima problemática do inchaço das grandes metrópoles pela sedução que essas provocam. Os amigos, a família e o amor são trocados por falsos encantos. A dúvida fatal é uma escolha atroz que se vê com o olho “Turvo”. Dois talentos que aparecem na ficha técnica do longa-metragem são de Volta Redonda: o ator/cantor Gabriel Hipollyto e Bárbara Yabrudi, que assina a assistência de direção do filme.
O bom cineasta cria o olho turvo
A linguagem usada nos diálogos cinematográficos tem um peso relativo. A de Woody Allen, que está muito arraigada na psicanálise, possui um valor particular psicológico. A linguagem futurística das histórias intergalácticas no cinema só a ciência poderá explicar, pois ainda não estamos lá. Ficção na língua, oferecendo verdades ou mesmo criando expectativas, faz do mundo do “logos” cinematográfico apenas mais uma articulação. Na sétima arte possuímos o diálogo e a imagem, para Nietzsche é Apolo. A música como um intruso metafísico que faz transcender o cinéfilo é Dioniso. É necessário, se possível, que o cineasta também seja músico como eram os dramaturgos das tragédias gregas no período pré-socrático, como Ésquilo e Sófocles.
Um bom filme, para não rotulá-lo prematuramente como excelente, com os pés no chão, falará a língua do povo. Uma fala jovem trará o aconchego e a vitalidade. Falará uma língua celeste em seu desfecho para que se compreenda o simples início de seu filme. O cinema da modernidade é liquido. Assim uma água viva deverá permeá-lo. Se correrem lágrimas melhor, o olho estará turvo. Um final triste, melancólico, trágico, trazendo e provocando a metanoia é a forma perfeita da dramaturgia grega do século V e das palavras de São João Batista. A indecisão dos caminhos da vida humana sempre trará a dura realidade das escolhas individuais.
Uma boa fotografia natural é necessária. Bem-vinda, brinda o cinéfilo com o “landscape”: a primitiva visão dos nossos antepassados. Uma pedra gigante onde se encontra um diálogo para se conhecer as dúvidas humanas, para um bom cineasta, é uma boa escolha, como cena e lugar para a reflexão filosófica: a mesma que Nietzsche escolheu para o conceito de seu eterno retorno. Subir uma alta montanha para conversar e duvidar do mundo e seus plurais caminhos pode consorciar um bom diálogo juvenil com a força da natureza, que é a vontade descrita por Schopenhauer em “O mundo como vontade e representação”. A dúvida deve pairar na composição de sua obra. Escarrar verdades nos diálogos se fazendo Deus é não conhecer o ser humano descaminhado e duvidoso de si e seu “dasein” heideggeriano.
O bom cineasta precisa apenas mostrar os caminhos e as dúvidas - não quer ser o algoz do destino desafortunado de uma péssima escolha individual. O olho deverá estar sempre turvo. Ficar ou não ficar, eis a questão shakespeariana! Se o homem abandona sua tradição e seu clã em seus caminhos e escolhe outro, assemelha-se a Édipo no seu desterro em Colono. A vida apresentada na telona cinematográfica é um convite ao pensar existencial. Não é necessário usar a linguagem espessa de Heidegger, mas poderá repaginá-la na voz juvenil de um “João” estereotipado que precisa amadurecer confrontando-se com as dúvidas vitais.
O gato diz a Alice que o caminho que se deve seguir depende para onde se quer ir. Mas a dúvida oferecida pelo bom cineasta não deve ser resolvida - tudo deve estar em aberto. Umberto Eco garante em sua “Obra aberta” que a arte deverá possuir uma pluralidade de interpretações: quanto mais conotativa mais aberta, mais bela no antigo sentido kantiano de universalidade. O semiólogo italiano inaugurou o novo conceito do belo que agora já não seria mais ontológico, porém, calcado na busca de novas interpretações pelo fruidor da obra - nosso cinéfilo.
Todos os caminhos, na verdade, pertencem ao destino, o efeito do livre arbítrio. Se o roteirista no seu diálogo determina esse destino, ele causará constrangimento em quem vê sua obra. Uma boa mensagem, o aviso e bom conceito de um filme são o de aconselhar no seu diálogo comovido: o humano que mudou seu destino a partir de uma voz metafísica que limpa sua alma. Este é o cineasta “Humano, demasiado humano!”