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Consolo e Atenção

Ecce Homo - Eis o homem, muitos querem a fama

Ver o show de cima dos palcos, espreitando a plateia em delírio, é conferir uma ilusão maquinada pelos produtores e a pela mídia

Música  –  31/01/2021 06:14

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(Foto Ilustrativa)

“Os produtores e a mídia oferecem fama aos desvalidos - precisa-se levar consolo aos desconsolados; sua principal função é a compaixão que se alia ao mercado fonográfico, dos canais de internet, dos spotfys”

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (e arquiteto) Ricardo Yabrudi 

Fãs querem gritar, uns mais alto do que todos. Querem ser visíveis, querem ser artistas - é a boa inveja de quem pisa no palco. Quem ouve quer ser ouvido.

Estes entusiastas da música pop sempre vestem a melhor roupa maltrapilha, é a moda viva de nossos tempos. Estão indo em direção a um show de rock, usam o jeans mais rasgado, para que vejam seus joelhos desnudos. Entram com esses no templo da música - o rasgam ainda mais se rastejando. Pagam uma promessa de origem pagã que se dá por mais um evento assistido; seu sagrado deleite. O seu jeans se abriu mais e as luzes abertas do palco cegam os olhos estupefatos os quais contemplam a nova tecnologia, é mais um mega show.

O guitarrista do grupo que se apresenta, famoso por seus dotes musicais, sola virtuosamente. Impressiona um jovem da plateia que finge estar também com uma guitarra - entretanto, seu instrumento é invisível. Ele, querendo imitar o artista ameaça uma escala com os dedos da mão esquerda. A palheta é seu indicador e polegar, que toca num surdo vazio com a cabeça baixa: é um gozo roqueiro! É corriqueiro esse gesto juvenil, onde estão muitos deles solando em seus corpos. Querem ser ouvidos com suas guitarras fantasma. A do nosso artista da plateia ficou em casa porque ninguém o ouve como os famosos - ele ensurdece os vizinhos. Não possui fama, é só mais um guitarrista anônimo. Suas visualizações nas redes são pequenas. Foi ao show do famoso para colher alguns farelos de fama, os que caem da mesa. Mas se frustra ainda mais. Por isso, larga sua guitarra de mentira e começa a gritar. Canta a canção do famoso com os olhos fechados para que o ouçam - é um grito alucinante para receber consolo e atenção. Mas a multidão abafa sua voz desafinada. É um ser perdido naquele mar humano, mar em fúria.

Uma vizinha de show ouve a lenta canção de amor quando esfria o frenesi do pesado “heavy metal”, é uma oração lenta profana que invade o espírito entorpecido pelo estrelato desafortunado. Em resposta ao agravo do anonimato ela também fecha os olhos, imagina sua própria plateia. Todos que estão ao seu lado gritam e choram. Ela pensa e engana a si mesmo, ouvindo sua interna penúria, para que os lamentos chorosos sejam para ela. Comovida em delírio, diz ao seu interior:

- O show é meu! Ela pensa assim, para seu próprio conforto e fantasia. Muitos querem ser ouvidos!

A poética das letras cantadas nesse evento fala deles, de seus afetos e desafetos. A lírica lhes cabe como uma luva para enganá-los, lhes fazer companhia, lhes explicar a vida conturbada contemporânea. Tudo foi muito bem articulado. A composição já não é mais fortuita, porém, maquinada para envolver o ouvinte, abraçá-los como um hecatônquiro, a própria mídia - ela tem múltiplos braços para aconchegar e consolar com sua poética coletiva persuasiva: é a esperteza dos produtores que faz com que o ouvinte pense que o show é deles e não mais do artista. O famoso, astuto como uma serpente, encanta a plateia com seu olhar gélido, de engano, maquinado pelos seus tutores midiáticos. Quase todos estão de olhos fechados, a plateia então se consome e desaparece numa cegueira coletiva. Só o evento vazio acontece. Cada um com sua plateia, cada um com seu show de mentira. É uma fé privativa. Acredita-se em si. O ato profano chega ao seu final e a multidão se esvai pelos portões. Todos estão satisfeitos. O dever está cumprido!

Os produtores e a mídia oferecem fama aos desvalidos - precisa-se levar consolo aos desconsolados. Sua principal função é a compaixão que se alia ao mercado fonográfico, dos canais de internet, dos “spotfys”. Precisa-se ouvir no divã púbico as queixas e os reclames dos que não são visualizados. “Eis o pop star”! “Eis o homem”, o “Ecce Homo” que não vemos - essa foi a frase de Pôncio Pilatos ao apresentar Jesus de Nazaré e título de uma das últimas publicações de Nietzsche. Esse filósofo da suspeita também escreveu uma outra obra que descreve o homem e seu instinto, seus anseios e sua vontade: “Humano, demasiado humano”! 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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