> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (e arquiteto) Ricardo Yabrudi
Três personagens da mitologia grega (Sísifo, Íxion e Tântalo) são representações de nossos sofrimentos terrenos. Eles estão pagando uma pena no Hades e nós aqui neste simulacro que imita e reproduz os sofrimentos desses mitos. A mitologia grega foi criada para explicar através de uma ótica divina: a vida humana que aspira ser uma divina vida.
O primeiro mito, Sísifo, rola a pesada pedra de todo o dia, como nós. O segundo, Íxion, é girado numa roda de fogo amarrado por serpentes - esse é o exemplo de cada dia humano, tudo sucedendo igualmente, novo e quente, torrando ininterruptamente os mesmos problemas tórridos. O terceiro, Tântalo, enfrenta a fome e a sede porque os alimentos e a água se afastam dele quando ele se aproxima - é nossa fome diária que nos faz trabalhar.
(Foto: Reprodução/Internet)
Sísifo, Íxion e Tântalo foram libertados temporariamente de seu sofrimento, quando Orfeu cantou no Hades
Esses personagens da mitologia grega podem resumir nosso dia a dia. Podemos ser castigados diariamente como eles com a diferença que: ainda estamos vivos e eles mortos, nós ainda não condenados e eles sim. Mesmo assim, o sofrimento se iguala, pois estamos sempre cansados de carregar nossas pedras, nosso esforço no trabalho: estamos amarrados a uma roda de fogo que nos aprisiona, a roda-viva, a roda-mundo, a nossa mente quente com problemas múltiplos e também nossa fome e sede diárias, como uma necessidade que incomoda e nunca se extingue. Talvez, os castigos não se apresentem todos de uma vez, todavia, de forma particular - cada dia um sofrimento diferente. Nossos condenados foram sentenciados a sofrer no Hades - foi a pena por atos cometidos em vida. Esses sofrimentos, contudo, são vividos pelos indivíduos ainda vivos sem uma condenação. A vida é dantesca. Vive-se como um condenado pagando penas.
Nossos afazeres são a pedra mais pesada porque nos privam do verdadeiro alimento da vida: o ócio que está sempre sendo afastado de nós. As contas e os boletos que estão para vencer nos encaram e com autoridade despótica determinam:
- Trabalhe mais!
Esse ser jogado no mundo, que se escraviza no trabalho, é o condenado Sísifo.
A roda de fogo em que está amarrado um dos condenados por serpentes tem em nossas vidas uma analogia. As víboras representam os inimigos que nos envenenam. Os problemas esquentam nossa cabeça, queimam os cartuchos da sobrevivência. O fogo devora riquezas - somos as carnes de um churrasco onde o anfitrião nos quer bem passadas. Que deuses nos condenam à miséria e à preocupação? Esse Olimpo idealizado é a cidade que nos aprisionou com seus costumes. Nascemos nus, sem nada. Ao crescermos e inseridos na sociedade, somos vítimas de sua insalubridade econômica e nos tornamos carne de uma imensa churrasqueira urbana. Somos Íxion!
A fome generalizada no mundo é sempre apagada e escondida das mídias sustentadas pelo incitamento ao consumo desenfreado. Repartir o pão de cada dia não é interessante para o capitalismo desenfreado sustentado por uma estrutura midiática. O mundo passa fome - são Tântalos e tantos Tântalos aos bilhões, invisíveis à piedade humana que não os vê. A fome não é mostrada, nem muito divulgada, pois é vergonhosa.
A mitologia grega nos conta que Orfeu invadiu o Hades para resgatar sua esposa Eurídice da morte e trazê-la para o mundo dos vivos. Ele entrou cantado e fazendo música, onde indivíduos vivos não podiam adentrar, todavia convenceu Caronte, o barqueiro que levava os mortos pelo rio Estige, a levá-lo. Nas portas do Hades se deparou com Cérbero, o cão de três cabeças, que adormeceu ao ouvir o canto de Orfeu. Nesse cenário até Hades, o irmão de Zeus e Deus do mundo inferior se encantou. Esse deus, o esposo de Perséfone chorando lágrimas de ferro, perguntou como ele havia adentrado o impenetrável mundo dos mortos. Orfeu respondeu que foi através da música que abre caminhos, encontra veredas metafísicas, trespassa paredes e que poderia levá-lo onde quisesse, pois é sedutora e convincente, encantando e consolando a todos. A música é um veículo - te leva onde quer, desvelando mundos escondidos e proibidos.
Nesse cenário orfeico, nossos personagens mitológicos (Sísifo, Íxion e Tântalo) foram libertados temporariamente de seu sofrimento, quando Orfeu cantou no Hades. Esse é o poder da música que por ser metafísica não é especificamente desse mundo enquanto entendimento, todavia, como o transporte e transcendência para outro lugar não físico. Quando se ouve boa música não se sente fome nem sede, as chamas do mundo que são os problemas, não ardem: a pedra que se deve rolar é esquecida num canto. A música te liberta do sofrimento! Te faz adormecer, te faz chorar, te transporta para fora do imanente, te apresenta a essência das coisas mesmas, esquecidas e encobertas pelo véu de Maya.