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É preciso sair de si de vez em quando, abandonar o corpo, colocar em fuga a alma para que veja de fora o ser revestido da essência do mundo
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Para Schopenhauer, a arte é uma atividade essencialmente metafísica, enquanto a ciência é relativa, porque o conhecimento científico é limitado - controverso historicamente. A arte não se importa com a conservação da espécie. Ela é livre em sua plenitude, agindo no mundo pelas mãos humanas e aflora para se fazer expressão máxima contra os interesses do conhecimento, quando simplesmente se joga à frente da intuição e curiosidade para mostrar um mundo paralelo diferente e muitas vezes contraditório ao modo da vontade de viver. Uma obra artística é o que é, sem questionamentos ou dúvidas de sua verdade. Ela não é colocada à prova de nenhum experimento, nem tampouco calculada sobre fórmulas que lhe deem crédito cientifico veraz. Por isso, a fruição e observação de uma obra é puramente contemplativa, sem pretensão.
Você só tem consciência da música que ouve quando ela ocupa o lugar da sua consciência. A música de fundo, a de distração, não somente te distrai quando te afasta dela mesma, te aproximando do que serve, por exemplo: numa cena de filme, numa propaganda de desodorante.
A verdadeira obra musical arranca tua alma e se coloca onde habitava a consciência. Esse câmbio acontece todas as vezes que uma obra de arte sonora alcança seu poder máximo: quando se torna obra-prima. Ao ouvi-la, ela toma o lugar da consciência e essa, sem mais o direcionamento a algum fenômeno ou a objetivação mesma, se perde numa alienação enquanto dura uma audição.
Um dos grandes motivos de distração para enganar o espírito humano, e não aliená-lo, é associar a música à poética. Nesse consórcio, a poesia toma emprestada os ouvidos para cegá-lo. A letra com informações que nos remetem ao real, à “res extensa”, nos fazem lembrar o terrível fenômeno, esse aliado do tempo e do espaço que nos prende à existência. Mesmo o amor na tentativa de ser traduzido, e com toda sua sedução nas frases de uma canção, nos remete ao corpo e à volúpia. Para isso, para uma perfeita alienação e empréstimo de nossa alma, num câmbio com a música, é preferível que ouçamos: as sinfonias, as sonatas, as suítes, todas instrumentais, que falam a língua da essência, da coisa-em-si de Kant, ou mesmo da vontade universal de Schopenhauer que abraça o ser e o anula com os misteriosos sons da grande música de Bach.
A música popular, essa pulverizada metropolitana música das massas, se agarra ferrenhamente às letras porque pensam traduzir, expor e explicar melhor o real: o que importa para os que se afastam das ideias filosóficas aliadas à metafísica da alma. Para os poetas, o logos, a letra, o lirismo vernacular deve explicar o mundo. Esse prognóstico embutido, como uma salsicha de hot dog, é o alimento comum dos que buscam apenas o viver no capitalismo consumista - querem ajudar apenas o corpo a viver melhor e se esquecem da alma que só entende a essência. Para se cultivar o espírito é necessário que o esvaziemos para ceder lugar à música instrumental. É preciso sair de si de vez em quando, abandonar o corpo, colocar em fuga a alma para que veja de fora o ser revestido da essência do mundo - para Schopenhauer, a coisa-em-si, a vontade universal.