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Espinha Dorsal

Melodia - A rainha do pop

Sua simplicidade, revestida de pobreza, humildade e muita beleza singela, traz consigo uma pequena mala com poucas roupas

Música  –  10/07/2021 09:57

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (e arquiteto) Ricardo Yabrudi 

A espinha dorsal da música pop é a melodia. Os “backing vocals” na música pop, como uma magra polifonia, são apoios e muletas que servem, por exemplo, como: sustentação vocal. Eventualmente, intentam substituir os metais (brass), podendo criar ecos como respostas ao que foi cantado e uma infinidade de outros aios. 

A ideia de coro na música pop de maneira geral se restringe ao acompanhamento da melodia. Entretanto, alguns grupos sensacionais, porém, se utilizaram, ao contrário, da polifonia para mascarar a melodia, sem, contudo não descaracterizá-la.

É notória a afirmação de que a melodia, mesmo com esses esbarrões da maravilhosa música vocal polifônica, não arredará pé e não emprestará seu cetro de rainha da música pop. Foi uma guerra longa e a consequente vitória em tombar, vencer o aspecto fugal em detrimento de um canto monódico, limpo, minimalista, graças à influência e com a ajuda da Igreja Católica, é claro, desde a bula “Docta Sactorum Patrum” em 1322. Também por orientação do papa Marcelo II, esse direcionou as composições de muitos compositores da Renascença (séculos XV e XVI), no qual Palestrina está incluído, para que seguissem em direção à “retórica musical”, que é onde o texto possui primazia sobre a música. Já aqui a contrarreforma exibia seus intentos. 

A melodia é surpreendente, radical, conservadora, tradicional, mesmo em tempos da moda da supervalorização da “singularidade” desde sempre na história. A polifonia foi singular na Ars Nova na Idade Média, mas não resistiu ao simples. Sua complexidade a mergulhou num mar tenebroso da incompreensão popular. No nosso artigo “O quadrivium esquecido” enaltecemos e orientamos a importância de se entender música como uma arte complexa pela sua escrita com todo o seu potencial. 

Desafortunadamente, a grande maioria não se impõe ao agrado de descortinar a música e ver o fundo de seu oceano. É um mar sem fim. Enganosamente, o pop quer enxergar apenas com a lente míope da melodia. Não há como convencer quem não quer ser convencido, como dizia Epicteto: “É impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe”. 

O arroz com feijão, a melodia, está sempre sendo servido nas mídias que se atolam em visualizações - seu combustível. Sua simplicidade, revestida de pobreza, humildade e muita beleza singela, traz consigo uma pequena mala com poucas roupas. Está pegando um trem na estação da rádio e do spotify. Ela chama atenção para si - essa pobre criatura indefesa se opõe à gigante polifonia. Porém, o Golias polifônico foi abatido por ela com uma funda. Ela, por seu grande feito contra os filisteus, é querida e amada por compaixão de seus fãs - uma obediência religiosa como ato pop. 

A gigantesca polifonia nobre sofre agora da má consciência, aquele conceito apregoado por Nietzsche na sua obra “Genealogia da moral”. Ela chora e se arrepende do mal que fez à música dos trovadores e os melismas que deturparam o canto gregoriano. Ela cede - os compositores bravios aderem a essa modalidade humilde para que os ouçam. O “ressentimento” da melodia provocou a má consciência nos bons compositores. A genealogia dessa moral na música nos servirá de exemplo quando alguma pedra fizer tropeçar ideias inovadoras. Já dizia Schönberg, nas palavras de Theodor Adorno: “My music is not lovely” (minha música não é adorável). Ele se referia à música que não é para ser açucarada ou amável, mas singular em direção ao novo, ao surpreendente, a uma evolução natural contemporânea - inclusive sendo essa a substituir a tonalidade pela atonalidade. Essa é a mensagem da obra de Adorno: “A filosofia da nova música”. 

A melodia venceu. Golias foi abatido. Os “songwriters” estão “avant-garde”, ganham as “justas” medievais.

No medievo, a Ars Nova cede lugar à música trovadoresca e cede ainda mais aos menestréis que são mais pops. Seriam nossos atuais “songwriters” os antigos trovadores medievais? Voltamos à Idade Média profana secular. Na igreja de Notre Dame se cantou a missa de Guillame Machaut, quando lá fora as tavernas estavam repletas do gentio mergulhado no doce vinho com os ouvidos surdos. Hoje as festas e os shows estão lotados e infestados das músicas dos “songwriters”. O público quer ser cantor, pois cantam as músicas com os olhos fechados. Querem também subir no palco. É tão fácil cantar uma melodia! Dizem: também consigo cantar como ele! Como disse Sartre para sua mãe quando ainda era criança ao ler Flaubert: 

- Também posso ser e “quero ser um deles”. 

Fazer música vocal polifônica como cantar uma das vozes num madrigal não é para qualquer um, é necessário ter primeiro o prazer no “quadrivium”. 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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