> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (e arquiteto) Ricardo Yabrudi
A preguiça, tão divulgada por Paul Lafargue, escrita no século XIX, apregoada por ele como um direito, é revelada em sua obra “O direito à preguiça”. Em sua visão, o futuro da humanidade estará sendo servida pelas máquinas. Na figura dos computadores, elas ajudam nesse conforto onde compõem músicas quase sozinhas representadas pelos teclados atuais, com suas bibliotecas de sons, ora sintetizados, ora sampleados. Pela facilidade da internet não é mais preciso visitar com frequência os amigos tomando um café presencialmente. Apenas os vemos, na atualidade, pelas telas - tomamos nosso café com cheiro de conforto onde o homem se isola. O Nazareno dizia: “Agora vamos para Betânia”. Caminhar não é mais preciso, e viver? “Navegar é preciso, viver não é preciso” - excelente frase profética do italiano do século XIV, Petrarca. Não estamos navegando na internet? O prognóstico se realizou! A canção “Os argonautas”, de Caetano Veloso, num belo fado, se utilizou dessa frase - já estava prevendo a navegação nas redes.
Desta forma, também, as melodias descansam em leve preguiça deitadas nas redes da internet para acompanhar a sonolência humana. São redes também para pescar, malhando o homem numa globalização virtual, mar sem fim!
Antes, caminhávamos frequentemente até as lojas de discos. Hoje, borbulham gratuitamente os hits como qualquer tipo de música nessas redes. Essas imploram para que a ouçamos, por exemplo, nos spotfys - uma brilhante estratégia de marketing. Apenas num clique - surgem para nosso pleno conforto uma fonte infinita musical que nunca se estancará. A música está sendo servida numa bandeja de prata. Nunca mais pagaremos diretamente por ela na internet, se assim decidirmos - embaladas como presente disfarçado, cavalo de Tróia para invadir nossas casas. Precaução, desconfiança nunca é demais.
Atualmente, tanto para fabricar sons tanto quanto ouvi-los, não é mais necessário tanto esforço. Entretanto, na Renascença, entre os séculos XV e XVI, para se ouvir um madrigal a quatro ou mais vozes era preciso cantar uma delas com amigos que cantavam em conjunto as outras partes.
Nas barbearias dos burgos estavam dependurados nas paredes: alaúdes e violas da gamba para quem quisesse manuseá-los. Para ouvir era preciso tocar. Nos séculos seguintes, no Barroco, no Classicismo e no Romantismo, as obras de arte da música foram ouvidas em grandes teatros, onde o palco italiano, de vista frontal, se tornou atração para seus aficionados. Hoje ouvimos Richard Wagner no Spotfy - o palco não mais visitado, agora pode ser nossa casa, o deslocamento é desnecessário porque foi rejeitado.
A preguiça, principalmente, em buscar a música real nas salas de concerto e até nos shows se tornou o mais delicioso “kitsch”. Ouvir de forma minimalista uma sinfonia em um celular ou no computador se tornou uma degradação auditiva. No entanto, os fones de ouvido chegaram para resgatar essa pobreza virtual, consequentemente, se intensificou a catarse apenas melhorando esse aspecto kitsch (o fenômeno que faz perder de modo minimalista a inteireza da obra de arte). Mesmo assim, a falsidade do som desses aparelhos está longe de repetir os harmônicos reais de um instrumento ouvido ao vivo. Nesse sentido, nem mesmo a música pop foi poupada. Ouvir uma voz cantada através dessas máquinas, onde se ouve um violão que a acompanha, se tornou uma deliciosa mentira, infestando os interiores e exteriores em que está sendo ouvido, um longe borbulhar como a funesta fantasia de se parecer com um show real.
Nada melhor que ouvir numa festa alguém cantando e tocando, pois soa diferente, agregando gente em volta, ao contrário da audição que isola privativamente o ouvinte em seu isolamento - o solitário imposto pelas mídias. Todavia, para que a realidade se imponha desejando afastar o virtual é necessário o deslocamento para encontrar amigos ao lado de uma quente fogueira.
A deliciosa permanente preguiça interna humana implora: “Fique em casa”! As máquinas estão vencendo, convencendo o homem em direção à clausura. Paul Lafargue estava certo, nós estamos cada vez mais parecidos com a ninfa “Quelone”. Essa foi castigada a viver dentro de sua própria casa porque por preguiça e sonolência não foi ao casamento de Zeus e sua noiva, Hera. Por seu desrespeito, o deus do Olimpo a transformou em uma tartaruga, pois ordenou a Hermes que a jogasse num rio e em cima dela, sua casa, para que nunca mais se ausentasse do seu conforto (Essa é história mitológica grega da gênese das tartarugas, dos quelônios).
Acho que a aposta de Zenão deve ser revista. Será que a tartaruga (Quelone) venceria Aquiles, analogamente, ao virtual oposto ao real? A música não deveria merecer tanta letargia. Ela necessita do movimento, sair de casa à procura do som real, procurando também bailar seus corpos na dança que se faz sentir o duende espanhol no corpo ao ouvir a mágica sonora arte. A tecnologia aprisionou o ser na sua pertinente privativa preguiça e com ela a inexata, ilusória música kitsch para culminar num atual fim letárgico.