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Há uma honesta poesia de amor compilada por Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras. A letra diz que talvez um anjo emudeça ao ouvir a voz de sua esposa. Provavelmente, ele a elevava, devido ao infinito amor que os unia a uma classe angelical, ainda que com uma vida terrena, dizendo nessa ode apaixonada: o céu abre suas portas ao ouvir a voz de Carolina. O amor inventa categorias, brinca com a metafísica, empodera humanos, diviniza quem ainda não recebeu o galardão das esferas divinas, mas através da poética o poeta transforma suas ideias numa realidade que transmuta almas e as traz do além para o mundo real pela pena que escreve as linhas do amor.
Essa poesia foi encontrada como um tesouro por Carlos Lyra. Revestida de verdades amorosas, apaixonadas, o grande expoente da MPB a vestiu com uma roupa musical “sui geniris”. Pediu licença à bossa nova para emprestar sua alegria, sua graciosidade, sempre ajudando o amor que é aliado das odes que enaltecem as mulheres, deusas humanas. Nasceu dessa empreita numa única união, uma linda canção, numa parceria em que o poeta e o músico, mesmo sem se conhecerem, preveriam a grande homenagem e descanso ao imortal Machado e sua companheira Carolina.
Essa canção foi encenada como um réquiem no traslado dos ossos, os restos mortais tanto de Machado de Assis quanto de sua esposa para o mausoléu da Academia Brasileira de Letras. Os ossos de Carolina e seu esposo ouviam a voz de Kay Lyra nesse segundo sepultamento, cantando “Quando ela fala”, canção de seu pai Carlos Lyra. Estariam agradecidos com tão elevada homenagem, pois estariam juntos para sempre. Os anjos estavam atentos a esse amor. Cupido, mesmo que mitológico, ainda na figura de criança com asas angelicais, disparava suas setas naquele evento de união, embebidas com o veneno da eterna paixão.
A carne desaparece depois da morte, também os tendões e os pulmões que um dia suspiraram de amor, inflados do oxigênio que um dia não seria mais necessário, contudo, os ossos ainda ouviam a obra agora acabada - a poesia aliada à música. Esse é o réquiem de Carlos Lyra e seu parceiro Machado de Assis. Mesmo que extemporâneos estava dedicado a quem o poeta amou profundamente. Essa poesia não verte apenas os pensamentos do escritor, todavia, das ações da amada - o amor é maior do que o discurso. Mas a mágica da literatura é exprimir as ações humanas e os sentimentos que passam despercebidos no dia a dia. A letra da canção, “Quando ela fala”, provoca os ouvidos ávidos do belo poético criando uma possibilidade de talvez um anjo emudecer-se, também o poeta, a brisa - para ouvir Carolina impetrar o silêncio de um anjo do Senhor.
Ali na Academia jaz um casal, juntos em eterna aliança, como deve ser o amor: inseparável, se for justo, e obediente à sua força indestrutível. Machado está em paz. Sua profecia, sua obra amorosa está concluída, abraçada a uma melodia como saída de uma antiga Lyra grega de Apolo, o deus mitológico da música. Também está assentada em rica harmonia, tons coloridos, audíveis até em outras esferas onde os anjos talvez se calem ao ouvir a divina canção. Machado implorou nessa poesia, como uma declaração de amor e testamento: “Pudesse eu eternamente, ao lado dela, escutá-la, ouvir sua alma inocente quando ela fala”!
Quando ela fala
(Machado de Assis)
Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala.
Meu coração dolorido
As suas mágoas exala.
E volta ao gozo perdido
Quando ela fala.
Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escutá-la,
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.
Minh´alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la,
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala