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A música é um presente divino, por isso a ouvimos diversas vezes como num eterno retorno, nos afogando em suas águas
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Eis o alerta de Homero: “Repetir o narrado é fastidioso”. Uma história contada duas vezes enfastia. Dizemos:
- Já conheço a piada!
Então, a repetitiva história se torna sem graça. Mas, por que ouvimos música centenas de vezes, principalmente as instrumentais; aquelas que não nos contam nada, sem verbo, sem letra, apenas nos remetendo à coisa-em-si kantiana ou a própria vontade do mundo shopenhauriana?
A repetição na música não aborrece nem enfastia, pelo contrário, nos dá prazer ouvir aquela passagem musical preferida quando experimentamos o retorno de sua quintessência. A própria música, sabendo que será ouvida novamente, sempre insiste nos seus ritornelos. Essa sinalização escrita nas partituras com barra dupla e dois pontos indica que aquela parte deve ser repetida. Mas por que, já que iremos ouvi-la em outro momento, dada sua graça e beleza?
A música diz:
- Vou repetir de novo para que você ouça como sou bela!
Ela é a imagem de uma linda criatura convencida no espelho que se gaba. Confiante, sabe que é especial para os indivíduos.
A repetição que não enfastia é o oposto do castigo. Sísifo rola sua pedra todos os dias. A música é esse doce açoite da arte musical: pura essência que repete nos ouvidos a mesma canção. No aforismo Nietzschiano da “Gaia ciência”, o filósofo nos apresenta a ideia de seu eterno retorno. Nele descreve o maior castigo maligno que se pode imaginar, como que se a vida se repetisse eternamente da mesma maneira como acontecido no dia anterior. Contudo, adverte que se essa repetição fosse aceita como um eterno prazer não viria a ser uma condenação, mas um presente divino. Ora, a música é exatamente esse presente divino, a própria vontade do mundo que se passa a conhecer. Por isso, a ouvimos diversas vezes como num eterno retorno, nos afogando em suas águas: num mar imenso, onde tudo é liquido, onde tudo é igual, como o belo que é igual ao belo, como a vida que é sempre igual à vida e como a igualdade humana, como o amor, sempre amor vencedor.
Apenas a música explica o indecifrável mundo caótico, pois é a essência do mundo. Nos escritos póstumos de Schopenhauer encontramos o seguinte: “...Uma explicação completa da música, em conceitos, seria uma explicação completa do mundo, em conceitos, portanto, seria a verdadeira filosofia”. Ele vai mais longe e exagera sua predileção por essa arte dos sons em detrimento de todas as outras: “Poderia não haver mundo, mas haveria música”.