(Foto Ilustrativa)
Os robôs não estão sendo pensados para
substituir o homem; em algumas linhas de produção
e em alguns serviços estão sendo pensados
para que sejam “os” próprios homens
Gilberto Alvarez Giusepone Jr.
Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, a questão da substituição do trabalho humano pelas máquinas tem sido objeto de debates e polêmicas. Um dos grandes estudiosos do tema, o economista alemão Karl Marx, por exemplo, afirmou que o capital só emprega a máquina na medida em que ela capacita o operário a trabalhar mais tempo para ele, gerando mais lucro.
No Brasil, país de industrialização tardia, esse debate teve início apenas no século XX. Há, inclusive, aspectos desse debate pouco rememorados, mas que fazem parte de uma história de contínuo descaso com o trabalhador brasileiro.
Na década de 1930, por exemplo, debateu-se o “risco” que a população analfabeta representava para o “progresso” do país.
Para o discurso higienista da época, os males sociais do país, como o analfabetismo, eram considerados “doenças”. A ideia de que éramos um povo “doente” alimentou milhares de páginas preconceituosas que foram escritas para lamentar a sorte da nação, uma nação que nunca poderia ser plenamente industrial, na lógica preconceituosa de quem assim pensava.
Mesmo lamentando a presença de uma população sub-escolarizada, até o direito universal a aprender a ler e escrever foi contestado.
Em 1932, o educador SudMenucci criticou os projetos que pretendiam alfabetizar o homem do campo. Em suas manifestações, ele defendia uma educação que convencesse o agricultor a permanecer no campo e lhe oferecesse “um mínimo, para compreender o básico”.
Menucci chegou a defender o analfabetismo com os seguintes argumentos:
“E a roça? Ficaria entregue ao analfabetismo? Sim, senhores. Mil vezes o analfabetismo completo, integral, absoluto do que a cartilha e o ensino que desambientam e destroem as energias moças do campo. Ou nós lhe damos o ensino e a educação de que ela precisa [para ficar no campo] ou tenhamos a coragem simples e estoica de não lhe dar nada. Antes nada que veneno”.
É difícil encontrar um modo de pensar que seja tão prodigioso na “arte de desumanizar” o outro, pois a forma como o educador paulista se referia ao homem do campo não o levava em consideração enquanto pessoa, mas sim como “peça” do mundo rural que não poderia deslocar-se sem prejudicar aquilo que ele considerava ser a “ordem natural de mundo”.
A despeito da enorme violência implícita na retórica de Menucci, é necessário reconhecer que esse tipo de intervenção não foi inaugurado na década de 1930 e tampouco ali se encerrou.
Na década de 1950, com a aceleração da industrialização brasileira, aumentou significativamente o número de manifestações lamentando o descompasso entre o povo que tínhamos e as necessidades operacionais da economia. Trata-se de uma perspectiva do pensamento social brasileiro que, mesmo permeada pela aridez de tais preconceitos sociais, tornou-se constante no modo de referir ao trabalhador “despreparado”, em razão de sua formação “rústica”, “arcaica” e “primitiva”.
O homem e a máquina, a máquina no lugar do homem são questões que lembram o movimento “ludista” da Inglaterra do século XIX. Naquele contexto, a resistência contra as péssimas condições de trabalho e a facilidade com a qual a mão de obra era dispensada favoreceu uma mentalidade de resistência que via na destruição física do “ente técnico” a tradução da expectativa de não ser descartado, substituído.
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A tecnologia como fator de desumanização do trabalhador é um aspecto estrutural das sociedades industriais. E o que faz diferença entre uma situação e outra é a solidez ou debilidade dos direitos sociais.
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Para entender essa afirmação um exemplo pode ser elucidativo, uma vez que a tensão presente em algumas situações pode colaborar no entendimento sobre o conteúdo da palavra desumanização nesta análise. Nos anos 1890, operários das fábricas de vidro da França quebraram instalações para evitar que máquinas fossem usadas para substituir a produção de vidro com a técnica do sopro. Embora seja de rara beleza, a produção de vidro através do sopro é uma prática insalubre, que destrói os pulmões do trabalhador em poucos anos.
Mas a mudança foi postergada porque a força do movimento operário exigiu garantias de que o processo em curso não significaria substituição de mão de obra por máquinas. Na década de 1930, no Brasil, os operários da indústria vidreira da cidade de São Paulo pararam a produção por muitos dias. Qual a pauta de reinvindicação? Exigiam que seus patrões trouxessem as máquinas que evitavam o uso da técnica do sopro. Era outro o contexto. Trabalhadores assimilaram a presença da máquina por intermédio da luta pela humanização das próprias condições de trabalho.
Nas décadas de 1950 e 1960 Álvaro Vieira Pinto e Celso Furtado, o primeiro no âmbito da filosofia, o segundo no processo de refundação da economia na Comissão Econômica para América Latina (Cepal), cada qual a seu modo, intervieram com imensa densidade nos debates sobre o desenvolvimento nacional defendendo uma tese: a disseminação de tecnologia não poderia ser uma dinâmica “poupadora” de mão de obra. Produziram páginas memoráveis sobre a qualificação das mãos pela qualificação dos instrumentos nas mãos, não no lugar delas.
Isso permitiu, por exemplo, a ousadia de afirmarem que em certas circunstâncias o arado era mais moderno que o trator. Se tivemos o desatino de escrever páginas e páginas a respeito do quanto o homem brasileiro não estava à altura de remodelações tecnológicas, tivemos também a dignidade de pensar exatamente o contrário, tal como os exemplos de Vieira Pinto e Furtado revelam. Porém, o recente e crescente encantamento com o papel que os robôs podem desempenhar no universo da produção industrial e da teia de serviços pode ser o prenúncio de uma desumanização sem precedentes.
A crueza chocante da fala de Sud Menucci exposta no início, os embates entre homem e maquinário parecem não fazer parte de um contexto como o atual, no qual a presença de robôs é pensada sem o homem em qualquer circunstância. Expressão ideológica de um modo de conceber a produção e a produtividade, a substituição de mão de obra por robôs parece ser uma estratégia que se vale da fragilização das instâncias de representação do trabalhador.
Os protagonistas dessa substituição não evocam as debilidades do trabalhador, tal como fez Menucci para referir-se ao homem do campo. Tampouco consideram os efeitos dos descartes que sucedem as dinâmicas de robotização. Mas quando há resistência, curiosamente lembram que “o ludismo é coisa do passado”. O processo de desumanização está menos na presença do robô em si e mais na hegemonia das palavras eficiência e produtividade quando a questão é o trabalho.
Eficiência e produtividade são palavras que têm sido naturalizadas a ponto de se tornarem indiscutíveis. Porém, o conteúdo de ambas é sim perfeitamente discutível, porque uma eficiência anuladora da vida e uma produtividade desumanizadora são exemplos de irracionalidades, em que os fins justificam quaisquer meios.
Os robôs não estão sendo pensados para substituir o homem. Em algumas linhas de produção e em alguns serviços estão sendo pensados para que sejam “os” próprios homens. É imensamente dolorosa a atualidade de Álvaro Vieira Pinto e de Celso Furtado. O encantamento com a possibilidade de substituir quase 50% da mão de obra com o artificio da robotização é um prenúncio não de desenvolvimento, mas de barbárie. A Escola de Frankfurt, na Alemanha, produziu reflexões importantes sobre as ilusões do progresso tecnológico.
Houve quem pensasse na máquina fazendo o trabalho do homem para que ele descansasse. Mas esses teóricos seguramente não estavam pensando no apogeu das relações capitalistas de produção; pensavam num mundo sem elas.
> Gilberto Alvarez Giusepone Jr. é diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber